Detroit: de cidade do carro a celeiro de soluções climáticas

Rodrigo V. Cunha faz um relato dos negócios e tecnologias climáticas apresentadas no TED Countdown Summit 2023

TED Countdown, em Detroit, trouxe cases de soluções climáticas
A A
A A

Quando descobri que o TED Countdown deste ano seria na cidade americana de Detroit, um pensamento de dúvida passou na minha cabeça. Por que lá? 

O TED Countdown é a principal iniciativa de clima do TED e Detroit, apelidada de Motor City, é a cidade conhecida por ser sede de uma economia em declínio e de certa maneira considerada vilã das mudanças climáticas, a automotiva.

Em 1950, no pico de crescimento, a cidade tinha cerca de 1,8 milhão de habitantes, número que caiu para 660 mil em 2022. Cerca de dois terços dos habitantes migraram para outros lugares, buscando atividades mais recompensadoras do que fabricar carros. Seguiu-se um cenário de desolação e falta de esperança, uma cidade cheia de prédios e casas fantasmas, com criminalidade em alta.

Então, por que Detroit?

Justamente por isso. A cidade está passando por um período de reinvenção, o que de certa maneira vai precisar acontecer com algumas indústrias ao redor do mundo, em um momento em que surgem coisas como inteligência artificial, green techs, eletrificação e novos modelos de negócios.

Além disso, Detroit está se tornando uma espécie de laboratório de mudanças climáticas e transformação. 

Em 2014, caíram 150 milímetros de chuva em apenas um dia, uma tempestade que costuma cair de 100 em 100 anos por lá. Porém, em 2021, choveram outros 150 milímetros em um dia, outra tempestade que cai de 100 em 100 anos. Como brincou a ativista social Laprisha Berry Daniels, não é preciso entender de matemática para saber que não houve um século de diferença entre uma chuva e outra. 

Detroit é uma cidade preparada para chuvas de no máximo 50 milímetros. As fotos das tempestades mostravam as famosas casas americanas com jardins verdes enormes na frente, todas com pilhas de objetos que haviam sido tirados dos porões. Cada chuva trouxe um prejuízo estimado de US$ 1 bilhão.

Mike Duggan, o prefeito da cidade, subiu ao palco do TED Countdown, que aconteceu de 11 a 14 de julho, para dizer como a cidade está se adaptando, com estratégia baseada em dados, políticas equitativas de resiliência climática com o envolvimento da população e um plano de monitoramento e avaliação. Duggan falou do plano de colocar painéis solares em diferentes comunidades da cidade e como esta escolha está sendo feita pelos próprios moradores dos próximos três meses.

Detroit é um microcosmos do caleidoscópio de soluções e discussões apresentadas para o enfrentamento das mudanças climáticas. É interessante ver a quantidade de oportunidades de negócios que existem na chamada economia verde. 

Um exemplo é a Northvolt, uma empresa de baterias elétricas nascida em 2017 e que em 2022 levantou US$ 1,1 bilhão para os planos de expansão industrial (aliás, quem quiser trabalhar neste setor, o site da empresa tem centenas de vagas em aberto em diferentes regiões da Europa). É o contraste entre o exemplo de uma Detroit que busca se reinventar e uma economia verde que está em plena expansão.

A complexidade do desafio é enorme e traz a necessidade de olhar para as intersecções para entender as enormes oportunidades. Existe em curso uma enorme disfunção das cadeias de valor, por mais que a indústria de petróleo esteja querendo adiar o seu fim com lobbies ao redor do mundo. (Al Gore fez uma fala absolutamente contundente sobre isso no evento. Ele lembrou, inclusive, que a presidência da próxima COP, em Dubai, será do CEO da Abu-Dhabi, uma das maiores produtoras de petróleo e gás do mundo.).

O fato é que muita coisa precisará ser transformada para que o aquecimento do planeta fique abaixo de 1,5ºC em relação à era pré-Revolução Industrial, o que muitos já consideram altamente improvável. De qualquer maneira, uma série de soluções apresentadas no TED Countdown são motivo para otimismo:

Prédios 100% elétricos. Só nos Estados Unidos, são 125 milhões de prédios que dependem de combustíveis fósseis. Donnel Baird, fundador da BlocPower, contou que quando pequeno, em dias muito frios, seus pais diziam para ele ligar o forno do fogão (mas não esquecer de abrir as janelas!) para esquentar a casa. Além do problema de segurança, substâncias tóxicas da queima de combustíveis, como benzina, metano e dióxido de nitrogênio causam problemas de saúde em crianças. Baird está transformando prédios ao redor dos EUA com programas de financiamento para possibilitar uma eletrificação para a população em geral.

Tijolo para capturar calor.  E se uma das tecnologias mais inovadoras para armazenar energias for uma das mais antigas? É o que propõe a Rondo Energy, com o tijolo que armazena energia. Segundo o CEO John O’Donell, precisamos descarbonizar mas não desindustrializar — o que é uma verdade. O tijolo que armazena energia pode ser uma solução de “calor limpo” para reduzir as emissões globais e garantir que a indústria siga com a energia que precisa para produzir para 10 bilhões de pessoas em 2050.

Hidrogênio verde. Um dos maiores desafios da indústria de transporte global é se livrar dos combustíveis fósseis, que garantem a energia necessária para viagens de longa distância de navios e aviões. Olivia Breese, CEO da Orsted, apresentou a tecnologia de obtenção de hidrogênio verde produzido a partir de água por meio de eletrólise feita por energia elétrica renovável. No site da empresa explicam como estão tentando transportar navios com vento transformado em hidrogênio verde.

Novas proteínas. O chines Tao Zhang trouxe uma reflexão interessante para diminuir o consumo de proteína animal. A China representa 26% do consumo global de carne e 45% do consumo de frutos do mar. Como os chineses são altamente exigentes com culinária e gostam muito de carne, é preciso desenvolver alternativas viáveis. Zhang apoia o desenvolvimento de startups (20) que criam proteínas de base vegetal. Ele chama de “novas proteínas” para mudar a percepção nem sempre boa em relação ao sabor e assim aumentar o consumo deste alimento alternativo, capaz de reduzir uma parte considerável das emissões globais.

Reciclagem de baterias. Quando o combustível fóssil é queimado, vai para a atmosfera e fica acumulado, criando este enorme problema que conhecemos. No caso da energia armazenada em baterias, além da possibilidade de se armazenar energias de fontes limpas e renováveis, é possível reciclar os minerais usados nas baterias e colocá-los de volta na atmosfera. “Vamos ter que aceitar a mineração como parte da solução e lembrar que estamos emprestando do futuro das próximas gerações e temos que fazer isso de maneira responsável de novo e de novo e de novo”, disse Emma Nehrenheim, a Chief Environmental Officer (um novo tipo de CEO) da Northvolt, a fabricante de bateria verde já citada neste texto. Ela e seu time desenvolveram a tecnologia capaz de separar os metais dentro da operação chamada Revolt, que fornece matéria-prima para criar as baterias recicladas.

Metaverso para soluções. Grande parte das indústrias, se não todas, estão atrasadas para cumprir as metas do Acordo de Paris, diz Cedrik Neike, chefe da Siemens Digital Industries. Neike usa o metaverso para testar possibilidades e modelos. Estão usando esta tecnologia para a reconstrução de um bairro em Berlim. Segundo ele, é possível testar os impactos e até certificar prédios com o selo Leed (de sustentabilidade) e entender os impactos antes de partir para a construção. Parece que há mesmo usos interessantes para o metaverso.

Inteligência artificial e mudanças climáticas. A pesquisadora Sims Witherspoon contou o que está fazendo para usar AI para ajudar no processo de adaptação climática. “Inteligência Artificial não é a bala de prata que vai resolver os problemas, mas pode ser uma ferramenta de transformação para a mudança climática. Principalmente para nós levarmos do ‘que’ para o ‘como’.” Vale conhecer o Climate Change AI, ONG global para catalisar as intersecções entre mudanças climáticas e machine learning.

Uruguai, o país da energia limpa. Nosso vizinho está impressionantemente avançado na transição energética. O ex-ministro de Energia Ramon Mendez Galain contou como o Uruguai saiu de um importador de combustíveis fósseis dos países vizinhos para um produtor de energia limpa, gerando empregos e melhorando as contas do país. Antes da transição, o país gastava 2% do PIB com geração de energia todo ano, o equivalente a US$ 1,1 bi; e agora investe a metade disso com a geração de 40% da energia com vento e 15% com biomassa. Hoje, 98% da energia do Uruguai vem de renováveis e apenas 2% de combustíveis fósseis. “Muita gente diz que isso é no Uruguai, porque é pequeno. Isso é uma falácia. Nosso modelo é totalmente replicável”, disse ele para uma plateia que o aplaudiu de pé de maneira empolgada.

Considerando todas estas soluções, as conversas paralelas, e um tanto de pessoas inspiradoras pelo mundo, saí de Detroit entendendo melhor por que o TED Countdown aconteceu lá. 

Existe uma necessidade de mudança e ela é possível como mostra uma reconstrução em curso numa cidade que busca ser uma electric motor city e um portfólio de empreendedorismo e ideias altamente necessários para uma raça em crise civilizatória.

Se depender da empolgação e trabalho das mais de 800 pessoas que estavam por lá, este novo modelo é possível de ser construído. Resta saber como será possível se adaptar aos eventos de 100 em 100 anos que já acontecem de ano em ano pelo planeta. Sim, ainda há tempo. Mas é preciso correr – e muito.

* Rodrigo V. Cunha é CEO da Profile, autor do livro Humanos de Negócios e curador do TEDxAmazônia.