O PL do mercado de carbono explicado: pontas soltas e ‘coisas demais’

A reportagem do Reset ouviu especialistas e analisou os aspectos mais importantes do texto aprovado ontem no Senado

O PL do mercado de carbono explicado: pontas soltas e ‘coisas demais’
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Poderia ser melhor, mas não tínhamos mais como esperar. Essa foi, em essência, a avaliação geral sobre a passagem no Senado, na noite de ontem, do projeto que cria o mercado regulado de carbono no Brasil. 

Os senadores aprovaram nesta quarta-feira (13) o projeto de lei nº 182, de 2024, que institui o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE). Ele impõe limites aos grandes poluidores e institui um mecanismo de compensações entre as empresas sujeitas à regulação, atribuindo um preço ao carbono e, com isso, estimulando investimentos na descarbonização da economia. 

Agora o projeto volta para a Câmara dos Deputados e depois seguirá para sanção presidencial. Como houve acordo entre as duas Casas, a expectativa é que o PL passe sem sustos e rapidamente pela Câmara (ao menos era o que se esperava antes das explosões ocorridas na Praça dos Três Poderes também na noite de ontem).

“A gente nunca conseguiria a perfeição. O texto nunca atenderia a todas as demandas. O país precisa dessa legislação”, diz Janaína Dallan, co-CEO da Carbonext e presidente da Aliança Brasil NBS, que reúne desenvolvedores de projetos de carbono florestais. 

Sem a lei, o país atrasa os necessários investimentos para descarbonização.

O grande problema do texto é que ele deixou a desejar no assunto principal, o mercado regulado, e sobrou naquilo a que não deveria se ater, o mercado voluntário. Essa distorção aconteceu principalmente na tramitação pela Câmara, onde foram incluídas inúmeras emendas sobre o voluntário. Mas, em nome da celeridade, a senadora e relatora Leila Barros optou por deixar o texto como estava. 

“A discussão do PL [pelos parlamentares] se voltou muito para o mercado voluntário e deixou pontas soltas importantes sobre o regulado”, diz Renata Amaral, sócia responsável pela área ambiental do escritório de advocacia Trench Rossi Watanabe. 

Natália Renteria, advogada especialista em mercado de carbono, diz que, por essa razão, o “day after” da aprovação será tão importante quanto. “O marco regulatório é essencial porque saímos da fase da inação para a ação. Mas a fase de regulamentação infralegal e implementação da lei fará toda a diferença para o resultado que alcançaremos.”

Mesmo imperfeita, a aprovação foi muito comemorada pelos atores que se envolveram na elaboração da regulação desde o início.

Um buraco

Em um sistema de comércio de emissões, também chamado de cap and trade, os entes regulados recebem permissões para emitir uma certa quantidade de gases poluentes. Quem emitir menos do que sua cota pode vender seu “saldo positivo” para quem exceder seus limites. 

Os limites de emissão vão sendo apertados gradualmente, o que se traduz no aumento do preço de negociação do carbono. A ideia é que isso sirva de incentivo econômico para que as empresas invistam em tecnologias de descarbonização em vez de ir ao mercado comprar créditos de carbono para compensar o que falta para que atinjam suas metas.

O texto define os limites de emissão, expressos em toneladas de carbono equivalente – os outros gases de efeito estufa são convertidos para uma base de dióxido de carbono, de acordo com sua contribuição para o aquecimento global.

Porém não está claro se os volumes de CO2e se referem ao grupo econômico ou a instalações individuais (como uma fábrica, por exemplo). 

Esse aspecto central da legislação não foi discutido.

 “É um ponto-chave que traz muita insegurança para o setor industrial, principalmente. Essa decisão muda completamente a quantidade de players que serão regulados”, diz Amaral.

O texto estabelece dois patamares diferentes. Emissores de gases de efeito estufa acima de 10 mil toneladas de CO2 equivalente por ano terão de fazer obrigatoriamente um inventário anual. Aqueles que passarem de 25 mil toneladas estarão sujeitos a reduções obrigatórias, que serão definidas posteriormente nos chamados planos de alocação.

Se for considerada a instalação, poucas unidades individuais atingem essa quantidade de emissões e não estariam sujeitas à nova regra. Por grupo econômico, se reúne as emissões de várias plantas, colocando um número maior de empresas para dentro do mercado regulado. 

A definição disso é fundamental para o planejamento das empresas, pois elas terão de se preparar para estar dentro desse mercado. 

Outra inconsistência: quando trata das punições, a lei fala que a multa será baseada no grupo econômico. Em tese isso pode ser resolvido na fase da regulação. “Essa é uma matéria que entendo que já deveria estar disciplinada na lei, que não deveria ficar para regulamentação posterior, mas provavelmente vai ficar”, diz Amaral.

Embora a ideia seja simples em sua essência, a operação do sistema exigirá um mecanismo sofisticado. “Dá para fazer uma analogia com a Receita Federal. Você não está criando um órgão como o Ibama, que a cada tantos anos precisa renovar uma licença. [O sistema] vai ter de lidar com muitos dados, que vão crescer ano a ano. São informações que terão de ser analisadas, depois vai se extrair uma conclusão, fazer o reporte para as nossas obrigações do Acordo de Paris”, diz André Vivan, sócio do escritório de advocacia Pinheiro Neto.

Ficou sobrando

Se esse ponto central do projeto ficou de lado, falou-se muito mais (desnecessariamente, na visão de especialistas) dos sistemas jurisdicionais de geração de créditos de carbono e do mercado voluntário em geral.  

“Colocaram coisa demais no PL”, diz Luiz Gustavo Bezerra, advogado especializado em mercados de carbono e sócio do escritório Tauil & Chequer Advogados.

As disposições sobre a exclusão de áreas privadas (proprietários, usufrutuários legítimos e concessionários) dos chamados programas jurisdicionais é um exemplo disso. 

Nesses sistemas, a contabilidade do carbono leva em conta a área inteira de uma jurisdição – normalmente Estados. Mas, dentro dessa área, pode já haver propriedades privadas com seus próprios projetos de carbono.  

O texto aprovado afirma que donos de terras dentro desses programas terão de solicitar essa “saída” dos jurisdicionais ao Conaredd, um órgão ligado ao Ministério do Meio Ambiente.

Mas as metodologias que auferem esses créditos já preveem esse “desconto” nos casos de projetos realizados dentro de jurisdições. No caso da ART Trees, adotada pelo governo do Pará, essa subtração acontece antes mesmo das emissões de créditos para o Estado.

A preocupação de garantir uma contabilidade íntegra é compreensível, pois uma eventual “dupla venda” dos ativos (pela jurisdição e pelo dono do projeto) derrubaria a credibilidade desses ativos.

Mas talvez essa distinção não fosse necessária. Além das provisões que integram as metodologias de apuração, existem outras iniciativas de autorregulação do mercado e uma preocupação redobrada por parte dos compradores.

Além disso, a lei também incluiu os créditos de restauro florestal sob o mesmo guarda-chuva do REDD+ (os créditos de preservação florestal), submetido ao Conaredd, e teme-se que o órgão fique sobrecarregado demais na missão de excluir terras privadas de programas jurisdicionais, algo delicadíssimo numa região (amazônica) em que a titularidade das propriedades é um problema estrutural.

Ainda no campo dos programas jurisdicionais, foi apresentada e aprovada uma emenda no Senado que determina que a receita da venda desses créditos de carbono podem ser pleiteados pelo proprietário ou usufrutuário da área, proporcionalmente às áreas de vegetação que ele tem.

“O texto antes previa a exclusão das áreas privadas do proprietário que não quer fazer parte do programa. Agora, além disso, podem pleitear os resultados financeiros correspondentes às suas áreas”, diz Amaral.

Isso pode gerar um impacto nas receitas desses programas, ser alvo de debates na Câmara e ser derrubado por pressão dos Estados.

Desestímulo

Yuri Rugai Marinho, CEO da Eccon Soluções Ambientais, que desenvolve projetos de carbono, tem uma visão bastante negativa sobre esse aspecto e que não é unânime. Ele acredita que pode haver um desestímulo para os projetos privados baseados na preservação de florestas.

“Os REDDs privados vão ter dificuldade para sair do jurisdicional e isso vai deixar o comprador com medo de estar comprando o seu crédito, porque pode ser que ele já tenha sido vendido pelo Estado”, diz. “Imagina o comprador notificando o Estado do Pará: me confirma que a área tal foi excluída?”

Se isso se confirmar, diz, as desenvolvedoras de projetos terão que se adaptar e explorar outros segmentos de mercado.

Outro aspecto que ficou em excesso, segundo os especialistas, é a regulamentação detalhada da modalidade de REDD. O texto cria diferenças e regras entre projetos de REDD+, REDD+ Jurisdicional, projetos públicos e privados, com ou sem “abordagem de mercado”. Algumas definições não são nem sequer compreendidas pelo mercado. 

A avaliação é de que sua regulamentação deveria ser feita em separado do PL, cujo objeto é a construção do mercado regulado. “A origem de toda dificuldade de negociação foi justamente o excesso de informações. A Câmara dos Deputados colocou muita coisa no projeto”, observa Marinho. 

Proibição de venda antecipada

É prática corrente no mercado voluntário o chamado contrato de offtake. Um investidor, ou eventualmente a empresa interessada em compensar suas emissões, garante a compra de ativos que serão gerados no futuro, muitas vezes fazendo também pagamentos antecipados.

Isso permite ao desenvolvedor financiar as atividades geradoras dos créditos – como a proteção da floresta em pé ou o plantio de árvores para a restauração de terras degradadas. 

“A lei veda esse tipo de contrato para os programas jurisdicionais sob o argumento de que um governo pode fazer a venda hoje, recebendo os recursos, e uma gestão futura não tenha a preocupação de entregar os créditos com a integridade prometida. Isso, segundo essa interpretação, fragilizaria o mercado brasileiro como um todo”, afirma Amaral.

O contraponto é que o próprio mercado cuidaria desse tipo de problema e a lei não precisaria entrar nesse nível de detalhe. Essa disposição pode vir a gerar litígios, segundo a advogada.

Recentemente, o Estado do Pará fez a maior venda de créditos de carbono do Brasil de seu programa jurisdicional, no valor estimado de R$ 1 bilhão, e parte do contrato, em tese, seria impactada pela nova lei se ela já estivesse valendo. Isso porque o Estado vendeu créditos relativos ao período de 2023 a 2026 e, assim, todos aqueles gerados a partir dos resultados futuros de preservação de floresta teriam que ficar de fora desse contrato e só poderiam ser vendidos depois.

Governança

A estrutura de governança do sistema regulado, imposto aos grandes poluidores, é composta por três níveis. As diretrizes gerais serão estabelecidas pelo Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima (CIM), criado em 2009. Um comitê formado por representantes do setor privado, da sociedade civil e acadêmicos será responsável por recomendações técnicas.

Todas outras atribuições de ordem prática ficam a cargo de um órgão gestor, incluindo a definição das regras, os planos de alocação de emissões, a aceitação de metodologias do mercado voluntário dentro do sistema regulado, a aplicação de sanções e o julgamento de recursos.

A lei prevê que a criação desse gestor ficará a cargo do governo federal. Os “superpoderes” concedidos a essa entidade são um ponto de preocupação, afirma Bezerra, do escritório Tauil Checker Mayer Brown. 

“Não se sabe quem vai ser, quem vai compor e como será organizado o gestor. Não se sabe se teremos uma autarquia ou uma agência reguladora. Vai ser a ANP?”, afirma Bezerra. “Ele terá poder normativo. O que ele decidir está decidido. E o desenho, agora, ainda está muito aberto.” 

Etapas e prazos

O texto descreve as etapas e prazos para que o sistema esteja funcionando. Na melhor das hipóteses, os limites de emissão começam a valer em quatro ou cinco anos. 

O SBCE será implementado em cinco fases. Na fase 1, a regulamentação da lei deverá ser feita em 12 meses, prorrogável por mais 12 meses. A fase 2 prevê um ano para a operacionalização, pelos operadores, dos instrumentos para relato de emissões. 

Na fase 3, no período de dois anos, os operadores estarão sujeitos somente ao dever de submeter um plano de monitoramento e apresentar inventário de emissões e remoções de gases ao órgão gestor do SBCE. 

Na fase 4 está prevista a vigência do primeiro Plano Nacional de Alocação, com distribuição não onerosa de cotas de emissões e implementação do mercado de ativos do SBCE. Na fase 5, a implementação plena do sistema ao fim da vigência do primeiro Plano Nacional de Alocação.

Preço no carbono

O mercado regulado é central no compromisso internacional do Brasil para reduzir as emissões de gases de efeito estufa. 

Hoje, as principais atividades emissoras do país são o desmatamento e a agropecuária. Mas, com a tendência de queda do desmatamento, as emissões da economia vão aumentar proporcionalmente. A meta nacional de descarbonização do Brasil, conhecido como contribuição nacionalmente determinada ou NDC, cobre toda a economia. 

O mercado regulado também garante que os produtos nacionais sigam competitivos no comércio exterior. A partir de 2026, a União Europeia vai aplicar uma sobretaxa a certos produtos importados que embutem muito CO2, como aço, cimento e fertilizantes. O Reino Unido deve fazer o mesmo no ano seguinte.

A lei prevê que os créditos que o Brasil aprovar para exportação dentro do Artigo 6 do Acordo de Paris terão de passar obrigatoriamente pelo SBCE. Essa é uma etapa desnecessária, segundo várias pessoas. Não é um impeditivo, mas poderia haver um simples registro desses créditos em vez de submetê-los ao processo de aceite.

(Colaborou Vanessa Adachi)