O agro está fora do mercado de carbono. O que isso significa?

Governo faz concessões aos ruralistas; PL cria outro tipo de incentivo para a descarbonização das atividades do campo

O agro está fora do mercado de carbono. O que isso significa?
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O governo conseguiu apaziguar os ânimos exaltados da bancada do agronegócio e aprovou ontem no Senado o projeto de lei que cria um mercado regulado de emissões de gases de efeito estufa.

Com plantações e rebanhos – a produção primária agropecuária – isentos dos limites de emissões, a Comissão de Meio Ambiente do Senado aprovou por unanimidade o PL 412, que agora segue para a Câmara.

A votação foi resultado de um acordo entre as senadoras Leila Barros (PDT-DF), relatora do PL, e Tereza Cristina (PP-MS), ex-ministra da Agricultura do governo Bolsonaro e representante da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA).

A concessão desagradou setores do governo que queriam enquadrar a atividade econômica que mais emite CO2 no país.

Mas, na prática, isso demoraria anos para acontecer. Medir as emissões do agronegócio é extremamente complicado, e as metodologias para fazê-lo ainda são poucas e recentes. Nenhum mercado regulado do mundo inclui a agropecuária.

A essência do projeto de lei é a criação do Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE), um mecanismo de cap and trade semelhante ao vigente na União Europeia desde 2005.

Os entes regulados recebem permissões para emitir uma certa quantidade de poluentes. Quem emitir menos do que sua cota pode vender seu “saldo positivo” para quem excedeu seus limites.

Os tetos ficam progressivamente mais estritos ao longo dos anos, o que encarece o fechamento da conta de carbono – criando incentivos econômicos para a descarbonização.

Em vez de submeter os produtores rurais às obrigações, o PL pretende induzir a descarbonização do campo de outra maneira, via mercado voluntário. (Abatedouros ou plantas de processamento de soja, por exemplo, podem ser regulados.)

A ideia é que agricultores e pecuaristas adotem práticas de menor impacto climático, como a redução no uso de fertilizantes químicos. Somando o carbono sequestrado pelo solo, propriedades rurais teriam um saldo positivo de CO2 – que pode ser transformado em créditos de carbono.

Esses créditos (ainda pouco comuns, mas que despertam enorme interesse) podem vir a ser comercializados dentro do próprio mercado regulado, dependendo da aceitação das metodologias pelo SBCE.

Escolher a cenoura em vez da vara faz sentido, diz Shigueo Watanabe Jr., especialista sênior do Instituto Talanoa, centro de estudos dedicado à política climática.

“O mercado regulado não é o instrumento adequado para induzir mudança na agricultura. Não existe vaca elétrica ou plantação de arroz a hidrogênio”, afirma ele. 

Além disso, como a produção no campo é pulverizada, a imensa maioria das propriedades rurais ficaria abaixo dos patamares mínimos de emissão e, portanto, estariam fora do alcance da lei.

“Nenhum outro mercado de carbono no mundo exclui o principal setor emissor da regulação”, escreveu no X (ex-Twitter) Tasso Azevedo, coordenador do MapBiomas e idealizador do Fundo Amazônia. Deixar o agro de fora, para ele, significa que o mercado regulado brasileiro está “fadado a ser nanico”.

Mas não teria como ser diferente, diz Natalie Unterstell, colunista do Reset e presidente do Instituto Talanoa. Mesmo que o agro tivesse sido incluído, ainda assim o mercado regulado seria nanico em relação às emissões brasileiras.

Perto do desmatamento, responsável por metade dos gases de efeito estufa lançados pelo país na atmosfera, “tudo fica distorcido”, afirma ela. As estimativas para um sistema de cap and trade sem o agro calculam uma cobertura de 15% das emissões do país.

A política do carbono

Observadores indicam que foi o próprio governo, por inabilidade política, o responsável pelas concessões que foi obrigado a fazer. “Isso é culpa da ala ideológica do MMA”, afirma uma pessoa que há muitos anos acompanha as idas e vindas do assunto em Brasília.

A redação original do projeto de lei, apresentado como substitutivo por Barros, já indicava que o campo ficaria para um momento posterior.

O texto condicionava a imposição de obrigações setoriais à existência de métodos confiáveis e amplamente aceitos para a contabilização do CO2, algo que ainda não existe para as atividades primárias da agropecuária.

Dessa forma, o foco do projeto estava nas indústrias pesadas, como siderurgia, cimento e energia, negócios que emitem muito e em pontos concentrados.

Na pressa de aprovar o PL – o mercado regulado é um pilar do plano de transição ecológica do governo federal e uma realização que Luiz Inácio Lula da Silva quer apresentar na COP28, em novembro –, faltou vender melhor a ideia aos parlamentares da bancada do agro, explicando as nuances de um assunto complexo e técnico.

Declarações públicas de integrantes do governo e os ânimos acirrados entre os ruralistas do Congresso depois da decisão do STF contra o marco temporal não ajudaram.

O que foi aprovado


O PL 412 agora segue para a Câmara. Caso seja aprovado sem alterações, vai para sanção presidencial.

Olhando além das controvérsias políticas, os especialistas expressam otimismo cauteloso.

“Estamos mais perto que nunca de ter o primeiro instrumento de mercado da política climática brasileira”, diz Unterstell.

A lei estabelece que instalações (como uma fábrica) que emitem mais de 10 mil toneladas de CO2 por ano terão de fazer um relato obrigatório de suas emissões. As que passarem de 25 mil toneladas anuais estarão sujeitas a limites.

A definição dos setores e das metas de redução fica para etapas posteriores.

Mercado voluntário de carbono

Um dos pontos controversos resolvidos no texto diz respeito aos créditos de carbono do mercado voluntário.

A versão anterior do PL criava incertezas sobre a admissibilidade dos créditos de desmatamento evitado, conhecidos como REDD+, de longe os mais comuns no país.

Ainda será necessário estabelecer os critérios de aceitação, mas o caminho está mais livre para projetos que hoje só conseguem vender para companhias que assumiram metas voluntárias de descarbonização.

“Estamos satisfeitos com o que foi aprovado”, diz Annie Groth, vice-presidente da Aliança Brasil NBS, associação das companhias que desenvolvem projetos de carbono.

Dúvidas sobre a governança

O SBCE será operado por um órgão gestor, responsável por definir quem estará sujeito às novas regras e às metas impostas a cada empresa, os chamados planos de alocação.

A instância decisória máxima, responsável por nortear o sistema e chancelar esses planos, será o Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima, ou CIM.

A concentração excessiva de poderes no governo federal foi alvo de críticas dos governos da Amazônia, que desenvolvem iniciativas próprias no mercado voluntário e queriam um lugar na mesa.

“As fragilidades permanecem”, afirma Unterstell. (Ela escreveu um artigo detalhando os potenciais problemas de governança. Embora baseado na versão anterior do projeto, as críticas seguem válidas.)

Como os governos amazônicos, as empresas, alvo da regulação, também haviam reclamado ter pouca voz na governança do mercado regulado. A versão aprovada criou um órgão para atender a essa demanda, a Câmara de Assuntos Regulatórios.

Uma das atribuições desse colegiado é participar na elaboração das normas de funcionamento do SBCE. Neste ponto, na opinião de Unterstell, houve retrocesso, pois ele é composto somente pelos atores sujeitos à regulação, sem a presença de organizações da sociedade civil.

Próximos passos

Embora o governo esteja determinado a aprovar a legislação a tempo da COP28, que começa no final de novembro, não há garantias de prazo e, crucialmente, de conteúdo.

Existem projetos concorrentes em tramitação na Câmara, e pode caber ao relator de um deles, Aliel Machado (PV-PR), a responsabilidade de tocar o PL aprovado ontem no Senado.

Não está afastada a possibilidade de que a bancada ruralista exija mais concessões, ou que alterações no texto obriguem uma volta do projeto de lei ao Senado. 

Falta pouco, mas o mercado regulado ainda não cruzou a linha de chegada.

E, é claro, ainda há muita coisa a ser definida na etapa de regulamentação. Mas o esforço de aprovação já serve como sinalização internacional, diz Renata Amaral, sócia do escritório de advocacia Trench Rossi Watanabe e especialista em política climática. 

“O Brasil deixa claro que quer um mercado regulado para atender suas metas no Acordo de Paris e chega mais bem posicionado para a COP, em Dubai.”.