A ideia de compensar emissões de gases de efeito com créditos de carbono pode estar com os dias contados. Pelo menos esse é um dos objetivos de um recém-lançado padrão de qualidade para os compradores de créditos.
A recomendação é resultado de dois anos de trabalho do Voluntary Carbon Markets Integrity Initiative (VCMI), que ouviu uma ampla gama de participantes do mercado para tentar organizar um setor acuado por problemas de integridade e reputação.
A adesão às regras é voluntária, e não há garantias de que elas se tornem um padrão de fato. Mas o VCMI conta com grandes companhias globais entre seus apoiadores, além de desenvolvedores, entidades da sociedade civil e governos.
O ponto central do padrão proposto é uma espécie de “selo de qualidade” que os compradores poderão associar aos créditos adquiridos. Inicialmente, são três níveis (prata, ouro e platina), que refletem a ambição climática de quem está adquirindo os créditos.
Eis o detalhe crucial: para receber um desses três carimbos, a empresa não poderá utilizar os créditos para avançar em suas metas de descarbonização, o chamado offsetting.
Uma empresa aérea que promete neutralizar as emissões dos passageiros por meio de créditos, por exemplo, não poderia mais fazê-lo.
Isso não impede que ela continue participando do mercado, é claro.
Só que os créditos teriam a finalidade de indicar o compromisso com a causa climática, algo como uma contribuição voluntária com o clima.
“Queremos incentivar as empresas a descarbonizar o máximo possível”, diz Ana Carolina Szklo, uma veterana do mercado de carbono brasileiro que responde pela área técnica do VCMI.
“A compra de créditos é algo além dos esforços que a empresa já está fazendo”, afirma Szklo.
O que pode ser dito?
Compensações não são permitidas, tanto no nível da empresa quanto em produtos ou serviços oferecidos. O uso primordial dos créditos, segundo a proposta, é nas comunicações com investidores e eventualmente com clientes.
“[O selo] não vai aparecer no rótulo da embalagem, mas pode estar no site ou no relatório de sustentabilidade”, afirma Szklo.
O nome oficial do padrão é Claims Code of Practice, algo como um código de conduta para as afirmações feitas pelos compradores. Os documentos já divulgados incluem sugestões de linguagem que poderiam ser empregadas. Eis um exemplo:
“Conforme progredimos para alcançar nossas metas de redução de emissões, reconhecemos a necessidade de contribuir para o net zero da sociedade. Portanto, compramos e aposentamos créditos de carbono de alta qualidade equivalentes a XX% das nossas emissões remanescentes no ano mais recente reportado.”
Mas será que um CEO terá como justificar um investimento que na prática não vai ajudar diretamente nas metas da companhia?
“A pergunta é legítima. Mas a estratégia da empresa vai além de bater metas. E ele vai poder dizer que está indo além do que tinha se comprometido a fazer”, afirma Szklo.
Empresas como a grife italiana Gucci e as aéreas easyJet e JetBlue já anunciaram que não pretendem mais usar créditos de carbono para fazer compensações.
Em paralelo a esse movimento voluntário, reguladores britânicos e europeus estudam como definir termos como “neutro em carbono” ou “carbono zero”, para evitar o greenwashing.
Contribuições climáticas
A ideia de uma contribuição climática voluntária é defendida há tempos por críticos do uso dos créditos negociados no mercado voluntário de carbono.
Eles argumentam que, ao usar esse mecanismo para fazer offsetting, as empresas estariam desviando a atenção do que realmente importa: efetivamente reduzir suas emissões.
“O código incentiva o setor privado a usar um modelo de financiamento de ações climáticas e ao mesmo tempo continuar a descarbonizar suas operações”, disse em nota o think tank Carbon Market Watch.
Tudo isso vai depender da adoção das regras propostas pelo VCMI. Pelo menos inicialmente, a barra é alta para os interessados.
Os selos só serão concedidos para quem comprovar que seus planos de descarbonização seguem a melhor ciência disponível e estão alinhados com o Acordo de Paris.
Também serão exigidos reportes anuais das emissões, seguindo o padrão GHG protocol. Esse nível de exigência significa que, pelo menos inicialmente, só as empresas de maior porte terão condições de se adequar ao padrão.
Szklo reconhece que os requerimentos não são poucos, mas afirma que a complexidade está ligada à robustez do padrão.
“Estabelecemos regras muito claras justamente para que não só as empresas, mas também os consumidores possam entender minimamente o que está acontecendo.”
Já existem estudos para lançar uma versão do código que seja mais acessível para companhias de médio e pequeno porte. Outra iniciativa em andamento é um padrão que lide com as particularidades do setor financeiro, cujo maior impacto está em suas carteiras.
Além dessa iniciativa do lado da demanda, uma outra de nome parecido (Integrity Council for the Voluntary Carbon Markets) já apresentou a primeira parte de um padrão para garantir a qualidade dos créditos vendidos.
Ambos os grupos prometem mais detalhes de seus padrões para os próximos meses.