COLUNA - CAROLINE DIHL PROLO

O fracasso do mercado de carbono em Dubai e o burnout das COPs

É preciso repensar o processo decisório da UNFCC para que ele seja capaz de conduzir para a superação de divergências, escreve Caroline Prolo

A COP28 aconteceu em Dubai em 2023
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Sempre fui uma defensora do processo da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC, na sigla em inglês) e sua capacidade de, no último minuto, conseguir chegar às decisões possíveis e necessárias, ainda que sejam o mínimo denominador comum. 

A Convenção é o tratado firmado na ECO-92, no Rio, que rege as negociações climáticas que acontecem nas COPs, as cúpulas climáticas da ONU. Segundo suas regras, todas as decisões devem ser tomadas por consenso dos quase 200 países signatários.

Mas, nesta COP28, a realidade foi bem diferente no tema dos mercados de carbono do Acordo de Paris. O que deu errado nas negociações do Artigo 6 não foi a existência de divergências entre os países, mas sim a incapacidade do processo de negociação de conduzir para a superação dessas divergências.

É necessário repensar a dinâmica do processo multilateral da UNFCCC para que ele possa servir a um novo contexto mais complexo, em que 195 países precisam promover a implementação doméstica de políticas de clima e mercados de carbono, além de contemplar mais repercussões e atores envolvidos, além dos limites do Acordo de Paris.

O tema dos mercados de carbono naturalmente divide os países. É essencialmente uma discussão sobre comércio de ativos ambientais entre partes do acordo e, possivelmente, também envolvendo atores privados. E, na COP28, as negociações estavam atingindo um momento crucial de operacionalização dos seus instrumentos de mercado.

Logo, o resultado desta COP traria um relevante sinal verde para governos e atores privados se engajarem nesses mercados. Por isso, havia grande preocupação sobre se esse pacote final de regras e processos corresponderia às expectativas da sociedade quanto à integridade ambiental deste que deverá ser o padrão ouro dos mercados de carbono. 

No artigo 6.4, a agenda tinha poucos itens – além da aprovação das orientações para metodologias de redução e remoção de emissões. Ao final, embora se tenha conseguido chegar a um consenso informal sobre o texto, a adoção da decisão foi bloqueada pela União Europeia enquanto não houvesse resolução do artigo 6.2. 

Já a agenda do artigo 6.2 era imensa: havia 17 itens na lista, incluindo aspectos de autorização, relato, registro e rastreabilidade dos chamados ITMOs (os resultados de mitigação negociados internacionalmente, algo equivalente aos créditos de carbono). 

O primeiro item era a definição do que seriam as “abordagens cooperativas” previstas no artigo 6.2, ou seja, quem seriam as partes habilitadas a transacionar créditos de carbono: se apenas países membros do Acordo de Paris ou também outros atores. Neste momento, ficou claro que havia visões distintas sobre conceitos fundamentais do funcionamento do artigo 6.2.

O processo da exaustão

Ainda que haja divergências, normalmente no final do processo, as partes, pressionadas pelo tempo e pela intenção de se chegar a algum acordo, acabam cedendo um pouco de cada lado, e chega-se a algum lugar no meio do caminho. O processo é feito para isso: fazer os delegados exaustos cederem no cansaço. 

Só que desta vez foi diferente: ninguém cedeu. Não foi possível se atingir qualquer tipo de consenso nem no artigo 6.2, nem no artigo 6.4. 

Essas divergências fundamentais sobre a abrangência do artigo 6 sempre foram conhecidas, embora não tivessem ainda sido tão explicitamente tratadas nas negociações. 

Assim, a pergunta que fica é: sabendo-se que, em meio a uma agenda extensa, havia muitas discussões técnicas e discordâncias fundamentais, por que o processo de negociação não foi conduzido de forma a evitar essa colisão explosiva ao final? 

Na minha experiência pessoal acompanhando boa parte das madrugadas de negociação, era doloroso ver a cada dia que não se conseguia superar as divergências em cada um dos 17 itens na lista. Os delegados trabalharam dia e noite, e viraram madrugadas por dois dias seguidos. Parecia que só um milagre poderia salvar essa negociação.

A última vez que me senti desta forma foi em 2015, na COP21 em Paris, quando, às vésperas do fechamento da cúpula, parecia que tudo ia colapsar e não haveria Acordo de Paris algum. 

Só que lá a presidência francesa, desde muito antes já preparada e bem assistida por um corpo técnico, conseguiu alinhavar um acordo nos derradeiros instantes, dando um show de diplomacia. 

Diferentemente do que ocorreu em Paris, em Dubai se subestimou a dificuldade da negociação de mercados de carbono em um ponto crucial de sua operacionalização. A primeira lição que fica é: não podemos mais subestimar o potencial de as coisas darem muito errado nas COPs.

No caso do Artigo 6, o que deveria ser uma discussão técnica acabou sendo dominado pelas diferenças de posições políticas, sendo que a negociação foi conduzida na confiança de que já se estivesse numa fase técnica. 

A sessão já começou com o rascunho de um texto de decisão de 29 páginas, recheado de uma “lista de compras” de opções de textos. Perdeu-se muito tempo discutindo palavras e vírgulas, quando não havia convergência sobre premissas fundamentais. 

Como advogada, também me desapontou ver que muitas das divergências entre os países poderiam ter sido superadas com uma hábil redação de texto final que conciliasse as distintas visões. Neste processo de redação, muitas vezes as partes descobrem que não estão tão distantes da convergência. 

O processo da UNFCCC deveria conseguir aproveitar melhor a competência de profissionais da área jurídica, que são treinados justamente para entender todos os lados e escrever cláusulas conciliadoras em negociações. A orientação de advogados também ajudaria a trazer a linguagem adequada, baseada em usos e precedentes jurídicos respaldados que tragam conforto a todas as partes. 

Uma dessas linguagens, por exemplo, foi o termo “materialidade”. 

O rascunho de decisão mandava o Secretariado da UNFCCC tomar providências em relação a “inconsistências materiais” nos relatórios apresentados pelas partes. Alguns países não estavam confortáveis com o termo, por ser uma expressão nunca utilizada no artigo 6. 

Ocorre que o termo é amplamente utilizado no mercado no contexto de relatos e declarações de informações financeiras. O IASB utiliza o termo e considera que informações são materiais se a omissão, distorção ou ocultação delas puder influenciar as decisões que os principais usuários das demonstrações financeiras tomam com base nelas. Um aconselhamento mais técnico sobre termos utilizados nas negociações poderia facilitar convergências e remover muito da “ambiguidade construtiva” das decisões da COP, que perpetua conflitos consolidados das negociações. 

A segunda lição, portanto, é: precisamos de novos olhares para as dinâmicas de negociação da UNFCCC, que tragam novos recursos, criem incentivos para o engajamento desde cedo e promovam confiança entre as partes, entre outras medidas que promovam boas decisões ao final. 

O processo multilateral da UNFCCC pode e deve ser reajustado diante da nova realidade complexa de um tratado internacional em que todos os países possuem metas individuais e precisam implementá-las no nível nacional. 

Essa é uma nova realidade, em que as posições vão ficar mais duras e divergentes até o final. As discussões vão ficar mais técnicas e informadas, com muitos e longos documentos de relatórios, estudos e submissões para serem lidas e digeridas pelos participantes das negociações. 

Instrumentos de mercado e financiamento privado vão criar outras influências externas ao processo que, ao mesmo tempo em que podem ser úteis (e até necessárias) para se implementar o Acordo de Paris, também podem acirrar competitividade e desencorajar a cooperação. 

A transparência, o escrutínio e a participação da sociedade civil, ao mesmo tempo em que pressionam pela conformidade e incentivam a ambição do sistema, também podem causar paralisia ou, no extremo oposto, greenwashing, pelos países. 

Por tudo isso, a UNFCCC não pode mais se dar ao luxo de contar com milagres que acontecem aos 47 minutos do segundo tempo da COP, às custas da saúde física e mental dos delegados e facilitadores do processo, e de toda a sociedade civil engajada. 

O risco é de termos decisões cada vez piores, ou de não termos decisão alguma. O burnout do mundo real também é o burnout do artigo 6 e é o burnout da UNFCCC. Vamos falar sobre isso.