Com a pressão por boas notícias no front ambiental, o presidente da Câmara, Arthur Lira, sinalizou, na última semana, que quer colocar em votação o projeto de lei que regulamenta o mercado de carbono no Brasil antes da COP, a conferência climática da ONU, que acontecerá no começo de novembro, em Glasgow.
Após anos de forte resistência, nos bastidores a percepção agora é de que há boas chances de o tema prosperar — especialmente porque os setores da indústria pesada, reunidos na Confederação Nacional da Indústria (CNI) e tipicamente os mais resistentes a uma precificação de carbono, estão abertos a discutir a criação de um mercado regulado no país.
“Com a iminência da taxação de importados na União Europeia e a possibilidade disso acontecer em outros países, como os próprios Estados Unidos, ficou mais vantajoso ter essa discussão”, diz Natalie Unterstell, presidente da Talanoa, think tank dedicado à política climática. “Essas indústrias preferem passar por uma tributação de carbono aqui a ter que pagar lá fora.”
O texto original do Projeto de Lei 528, apresentado em fevereiro pelo deputado Marcelo Ramos (PL-AM) — que focava mais no mercado voluntário de créditos de carbono e continha problemas conceituais —, está sendo lapidado.
Um substitutivo feito em conjunto com o Centro Empresarial Brasileiro pelo Desenvolvimento Sustentável (CEBDS), com base em mais de três anos de estudo sobre o que seria o modelo ideal de precificação de carbono no Brasil, já está na mesa.
“É um texto muito bom, que bebe da fonte da melhor experiência de sistemas eficazes e consolidados, como o mercado de carbono europeu”, afirma o advogado Luiz Gustavo Bezerra, sócio do Tauil & Chequer Advogados.
A equipe do deputado Marcelo Ramos, que é vice-presidente da Câmara, trabalha agora num terceiro substitutivo, tentando conciliar parte da visão da indústria. Em evento realizado ontem pelo CEBDS, ele disse estar buscando uma versão consensual para que o projeto possa ir direto a plenário.
“Esse texto vai sair com o máximo de convergência possível. A gente já tem dialogado muito com a CNI, acatado muitas sugestões”, afirmou o deputado. “Queremos chegar a um texto médio, que possa unificar pelo menos CEBDS, que é quem tem mais acúmulo [de conhecimento] sobre essa matéria, e a CNI. E estamos dialogando também com a indústria de mineração, com o agro e com a Anfavea [associação que reúne as montadoras de veículos]”.
O plano A é levar o projeto para votação na Comissão de Meio Ambiente, liderada pela deputada Carla Zambelli e onde haveria o debate mais técnico, e, a partir dali, seguir para o plenário.
O mercado regulado, segundo o CEBDS
É difícil prever o que vai sair da solução ‘salomônica’ buscada por Ramos. Mas dá para saber se onde ela parte.
A proposta do CEBDS tem sido vista como padrão-ouro, baseada no trabalho realizado por mais de três anos no projeto Partnership for Market Readiness (PMR) Brasil.
Coordenado pelo Ministério da Economia e pelo Banco Mundial, o projeto reuniu mais de 80 especialistas, entre acadêmicos e membros do setor empresarial, e avaliou as melhores alternativas para a definição do preço do carbono no Brasil.
As conclusões foram apresentadas numa proposta detalhada de marco regulatório feita pelo CEBDS e estão incorporadas em grande parte no substitutivo do PL 528.
Em linhas gerais, o texto dá as diretrizes para a criação de um mercado regulado de carbono no Brasil e estabelece a criação de um Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões (SBCE).
Nesse sistema, é estabelecido um limite máximo de emissões para setores poluidores, com atribuição de direitos de emissão de gases de efeito-estufa que podem ser negociados entre os agentes regulados.
Grosso modo, a ideia é que quem emitiu mais que o permitido precisa comprar de quem emitiu menos, o que gera um preço de carbono e incentiva a redução de emissões. Setores específicos ainda não são identificados na proposta.
A proposta do CEBDS contempla duas grandes preocupações do empresariado: o sistema de comércio de emissões seria implantado gradualmente, garantindo uma curva de aprendizado não só para as empresas como para reguladores e agentes de controle envolvidos, e com mecanismos de proteção à competição.
Na primeira fase, com três anos de duração, a regulação seria restrita apenas a fontes que emitam acima de 50 mil toneladas de carbono equivalente, o que, na prática, inclui apenas setores muito intensivos em carbono. A ideia é ir apertando as metas anualmente para garantir a redução das emissões.
Em seguida, teria início a fase 2, até 2030, cobrindo outros setores e incluindo outros gases de efeito-estufa que não apenas o CO2.
Para proteger a competitividade da indústria nacional, a proposta é que os direitos de emissões sejam alocados de forma gratuita para setores que são muito expostos à concorrência internacional. (Além da distribuição gratuita, que deve abarcar a maior parte do mercado, outra forma de concessão de direitos seria por meio de leilões promovidos pelo governo.)
Uso de offsets
Além da compra de direitos de emissão entre os agentes que serão regulados, parte poderá ser comprada no chamado mercado de offsets — gerados por fontes que não farão parte do SBCE, como créditos florestais e de energia gerada por biogás.
“Cada empresa poderá conciliar suas emissões no fim do ano, algo como 20% a 30%, não só com direitos de emissão, mas com offsets de fontes não reguladas”, explica o professor Ronaldo Seroa da Motta, que fez parte do PMR e é o coordenador técnico da proposta apresentada pelo CEBDS.
A maior parte dos mercados internacionais permite algum nível de uso de offsets nos seus sistemas regulados.
Mas no Brasil a discussão é ainda mais relevante por conta do nosso perfil de emissões: a mudança do uso da terra — ou desmatamento — responde por 44% das nossas emissões, enquanto a agropecuária responde por outros 28%.
Permitir o uso de offsets desses setores é uma forma de garantir financiamento para projetos de regeneração e que mantêm a floresta em pé, além de manejos mais adequados para a agricultura.
Fortalecendo o mercado voluntário
Além de dar as diretrizes gerais do que seria o mercado regulado brasieliro, o substitutivo ao PL 528 apresentado pelo CEBDS traz os contornos de boas práticas para o mercado voluntário de créditos de carbono — uma das principais preocupações do texto original apresentado em fevereiro.
A proposta é criar o Sistema Brasileiro de Registro de Compensações (SBRC), dando segurança jurídica a esses créditos e permitindo que o Brasil exerça sua vocação de ser um grande exportador de offsets.
“Esse sistema vai credenciar padrões de certificação, certificadoras, baseado em alguns princípios que são muito importantes para o Brasil, principalmente salvaguardas ambientais e sociais”, afirma Seroa da Motta.
A ideia é dar conforto às empresas que queiram compensar suas emissões usando créditos brasileiros e criar uma base institucional para que o Brasil participe de mercados internacionais importantes — como o previsto pelo Artigo 6 do Acordo de Paris, que será discutido na COP 26, e o Corsia, de compensação de emissões para o setor de aviação.
A proposta não é certificar, mas estabelecer quais padrões são mais aceitos e fazem sentido de acordo com a realidade brasileira. “De um total de dez padrões existentes, temos conforto com cinco”, completa Natalia Renteria, gerente de clima do CEBDS.
“Queremos criar uma base para esse mercado se desenvolver, mas sem burocratizar, porque, como o próprio nome diz, é um mercado voluntário.”
(Foto de Marek Piwnicki, no Unsplash)