A lei que cria o mercado regulado de carbono no Brasil trouxe uma exigência para as empresas de seguros, capitalização e previdência complementar aberta: parte de suas provisões técnicas (as reservas guardadas para responder às suas obrigações adquiridas nos contratos de seguro e dos planos de previdência) terão de ser investidas em créditos de carbono.
A obrigação é uma boa notícia para quem negocia esses ativos no mercado voluntário e tem como clientes companhias que decidem compensar seu impacto climático mesmo sem estar sujeitas a regulação.
Do outro lado, porém, ela foi recebida com surpresa e preocupação pelas empresas de seguros. Elas temem que se abra um precedente para que o Congresso passe a “carimbar” as reservas do setor para demandas diversas, além de aumentar seus riscos.
As empresas de seguros, resseguros, capitalização e previdência aberta (que fazem a gestão dos planos VGBLs e PGBLs) terão que destinar entre R$ 7 bilhões e R$ 9 bilhões para créditos de carbono ou fundos que invistam nesse ativo. As contas são preliminares e feitas pela Susep (Superintendência de Seguros Privados), que regula e supervisiona o setor. A lei define a destinação de 0,5% das provisões, hoje em R$ 1,8 trilhão.
O número é apresentado numa faixa porque a base sobre a qual o percentual será aplicado será definida pela regulamentação da norma. “Existem discussões técnicas que ainda precisam ser assentadas. Qual é o exato conceito de provisão e a base numérica, que é variável. Isso será definido na regulamentação”, disse Alessandro Octaviani, superintendente da Susep, ao Reset.
A principal preocupação das empresas de seguros é criar uma obrigatoriedade de investimento sem precedentes para o setor.
“O problema nem é tanto o percentual de 0,5%, mas podem surgir uma série de outras demandas para as seguradoras se esse tipo de norma fizer escola no Congresso”, disse o advogado Ernesto Tzirulnik, presidente do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS), em evento promovido pela FGV (Fundação Getulio Vargas), em São Paulo, para avaliar os impactos da lei de carbono.
Na norma atual, há tipos de ativos permitidos ou não e limites de aplicação. Com isso, as empresas definem a alocação com base na análise de risco, rentabilidade e liquidez dos ativos, que precisam estar casados com os de seu passivo.
Um executivo do setor, que pediu para não ser identificado, usou como exemplo um seguro de carro, que dura um ano. Esse é o prazo do passivo da seguradora, que poderá ter que pagar indenização dentro desses 12 meses. Já projetos que geram créditos de carbono normalmente têm um prazo bem mais longo. “Isso pode gerar um descasamento e aumentar o risco da seguradora”, explicou.
No caso dos planos do tipo VBGL e PGBL a questão é ainda mais sensível, pois os gestores têm um dever fiduciário com os clientes. Esses fundos costumam oferecer faixas de perfil de risco nos planos, em que o cliente escolhe qual nível de risco está disposto a correr. A partir disso, os gestores aplicam as reservas em ativos compatíveis.
Regulamentação
Para que as seguradoras cumpram a exigência da nova lei, uma série de normas precisam ser ajustadas e criadas. A regulamentação envolve, pelo menos, quatro órgãos: CMN (Conselho Monetário Nacional), CVM (Comissão de Valores Mobiliários), CNSP (Conselho Nacional de Seguros Privados) e Susep. “São várias competências normativas que têm que ser articuladas”, explica Otaviani.
O CMN é quem define as normas de aplicação dos recursos das reservas técnicas das empresas de seguros, o que inclui as empresas de previdência aberta. Descendo um degrau, o CNSP é formado por diversos órgãos (ministérios da Fazenda, da Justiça, Previdência Social, Susep, Banco Central e CVM) e regulamenta e fiscaliza como o setor aplica os ativos das provisões, juntamente com a Susep. Como os créditos de carbono passam a ser ativos mobiliários, a competência de regulá-los é da CVM.
“Talvez tenha mais outras competências aí que a gente vai descobrir no meio do caminho, ainda estamos mapeando o escopo da lei”, diz o superintendente da Susep. “Juntamente com as secretarias da Fazenda, de Política Econômica e de Reforma Econômica, vamos fazer um amplo processo de diálogo, ouvindo todo mundo.”
Outra preocupação do setor é sobre o tamanho do mercado de créditos de carbono. Estima-se que, globalmente, ele fique em torno de US$ 1 bilhão, segundo a consultoria McKinsey.
“É claro que primeiro a gente olha oferta e demanda. Qual a oferta de crédito de carbono? Qual a demanda que esse perceptual das reservas técnicas vai significar? A gente precisa ver qual o encontro, ou desencontro, entre os dois. E olhar também para a oferta potencial, não só a passada, as perspectivas e possibilidades de crescimento dessa oferta”, disse Cristina Reis, subsecretária de desenvolvimento econômico sustentável do Ministério da Fazenda.
Ela participou do evento da FGV. A uma plateia de cerca de 100 pessoas, a secretária contou o histórico de tramitação do PL de carbono – Reis trabalhou diretamente nas negociações com os parlamentares – e como o mercado de carbono se encaixa dentro do plano de Transformação Ecológica do governo, que tem uma trilha de finanças.
“Foi na Câmara, ali perto do Natal, que entrou o artigo dos seguradores. Não foi uma proposta do Executivo, mas a partir do momento que entrou na lei, o Executivo passou a analisar o que significava e como implementar”, contou.
Não está claro também quando a obrigatoriedade de aplicação dos recursos começa a valer. Originalmente, o artigo 56 da lei nº 15.042 estabelecia um prazo, mas uma outra lei editada 15 dias depois alterou esse artigo, deixando sem prazo e reduzindo o percentual de destinação das reservas técnicas, de 1% para 0,5%.
Essa regulamentação corre em paralelo com a regulamentação do próprio Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões, o SBCE, que é o mercado regulado criado pela lei. Conhecido como cap and trade, ele impõe limites de emissões de gases de efeito estufa aos setores mais poluentes da economia e institui um mercado de compensações. Neste caso, a norma estabelece uma regulamentação em quatro fases, que deve levar cerca de cinco anos para colocar o sistema de pé.
Carimbo bilionário
Em tese, as seguradoras já poderiam investir em créditos de carbono. Mas, na prática, isso não acontece porque o mercado de carbono ainda não tem a estrutura exigida pela norma.
A resolução do CMN n° 4.993, de 2022, lista entre os ativos permitidos para alocação das seguradoras, até o limite de 25% do valor das reservas, “certificados de Reduções Certificadas de Emissão (RCE) ou de créditos de carbono do mercado voluntário, admitidos à negociação em bolsa de valores, mercadorias e futuros ou mercado de balcão organizado, registrados ou depositados, respectivamente, em entidade registradora ou depositário central, autorizados pelo Banco Central do Brasil ou pela Comissão de Valores Mobiliários”.
Hoje o Brasil só tem em funcionamento um mercado voluntário de créditos de carbono, mas eles ainda não são negociados em bolsa ou mercado de balcão organizado – a expectativa é que essa estrutura passe a existir a partir da regulamentação da lei.
O mercado voluntário passa por uma crise profunda há pelo menos dois anos, com os preços dos ativos em queda livre. Os créditos de carbono do tipo REDD+, que geram créditos a partir da proteção de florestas, estão envolvidos em denúncias de exagero dos benefícios climáticos, exploração de populações indígenas e comunidades empobrecidas e em fraudes milionárias – como a revelada na como a revelada na Operação Greenwashing.
O Reset procurou a CNSeg, confederação que reúne as empresas do setor, para comentar o impacto da lei de carbono sobre o setor. Por meio de sua assessoria de imprensa, a entidade disse que “está analisando a lei, seus impactos e consequências para o setor e acompanhando o debate sobre a regulamentação do tema junto à Susep”.