Como a Biofix leva os créditos de carbono aos indígenas

Com dois projetos no Brasil, startup colombiana faz contratos em áudio e emprega antropólogos para obter consentimento prévio das populações

Indígenas produzem artesanato típico da Ilha do Bananal
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Territórios indígenas lideram com frequência os rankings das áreas menos desmatadas do país, mas isso não aparece no mapa dos projetos que remuneram o trabalho de proteção da vegetação nativa com créditos de carbono.

Somente 6 do 139 projetos de geração de créditos florestais brasileiros registrados na base da Verra, a maior certificadora do mundo, têm como “donos” povos indígenas, pequenos agricultores ou comunidades tradicionais, segundo levantamento realizado pelo Idesam, uma ONG amazônica.

A maioria das companhias desenvolvedoras atua em áreas privadas, tipicamente em acordos de parceria com donos de terras e, num movimento mais recente, em áreas pertencentes a governos, mediante licitação. 

De certa forma, trata-se de escolher que problema resolver. Trabalhar com particulares envolve lidar com o problema da titularidade das propriedades, algo especialmente complicado na Amazônia brasileira. A maior parte dos empreendimentos não passa da análise fundiária inicial.

A Biofix optou por outro caminho. Em áreas indígenas demarcadas, a propriedade da terra deixa de ser uma questão, pois a legislação garante todos os direitos aos ocupantes do território. 

Por outro lado, quem atua nesses territórios tem de lidar com outro tipo de complexidade, a CLPI. A sigla indica consentimento livre, prévio e informado, ou seja, a concordância expressa dos habitantes do lugar com as atividades econômicas que serão realizadas. 

Consentimento

A empresa colombiana, fundada em 2018, tem onze iniciativas de desmatamento evitado em seu país de origem e duas no Brasil. Aqui, o foco é em terras de povos originários. (Na Colômbia ela também trabalha em áreas quilombolas.)

Com a missão de “gerar financiamento climático para comunidades étnicas por meio de soluções baseadas na natureza”, a Biofix escolheu atuar em um terreno sensível do mercado de carbono e, num contexto mais amplo, da justiça climática.

Projetos que geram créditos de carbono, principalmente os que envolvem proteção da floresta, foram alvo de uma enxurrada de denúncias nos últimos meses.

Além de fraudes e de exagero nos benefícios climáticos, houve acusações de exploração por empreendedores que se aproveitaram da complicação técnica dos projetos para lesar pessoas que muitas vezes não entendiam os documentos que estavam assinando.

O consentimento livre, prévio e informado faz parte de uma convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT) da qual o Brasil é signatário. O tema também é central nas tentativas de restaurar a confiança no mercado voluntário de carbono.

Mas obter o CLPI da forma correta não é simples, segundo Cristiane Leme, responsável pela operação da Biofix no Brasil. “Temos que entender e respeitar a governança da perspectiva das comunidades, não da Biofix”, diz Leite. “Essa é uma das partes mais importantes do CLPI.”

O primeiro projeto da companhia no Brasil, na Ilha do Bananal (Tocantins), abrange 4.800 pessoas de três etnias (carajá, javaé e avá-canoeiro), que falam duas línguas diferentes (tupi-guarani e inyrabé), estão dividas em 43 aldeias e são representadas por quatro associações.

“Como não existem requisitos mínimos nem um modelo básico para o processo de consulta, o trabalho muitas vezes tem que começar do zero”, diz Leme.

Em muitos casos, as associações indígenas já têm definido em seus estatutos o procedimento para a tomada de decisões coletivas. No caso da Ilha do Bananal, essa etapa já estava cumprida.

Mesmo assim, uma antropóloga contratada pela startup estuda os ritos “legais” de cada comunidade para garantir que a governança local esteja sendo respeitada.

Mão dupla

A clareza na comunicação é essencial nos dois sentidos. Não são muitas as pessoas numa aldeia indígena capazes de entender como funciona o mercado de carbono – o que provavelmente também é verdade na avenida Paulista ou na praia de Copacabana.

“Quase sempre a primeira pergunta que nos fazem é: ‘Mas como assim, vocês vão roubar nosso ar, nosso oxigênio?’”, diz o diretor jurídico da startup, Jeronimo Roveda.

As conversas, que sempre acontecem na localidade, contam com intérpretes, e os contratos recebem um cuidado particular, afirma Roveda. “Usamos uma técnica chamada legal design (design jurídico), com figuras, iconografia, fluxogramas e expressões na língua materna.”

No segundo projeto da companhia, no Maranhão, uma versão eletrônica dos documentos enviada por celular continha um ícone clicável que abria uma versão lida em tupi-guarani.

“Não é só uma questão de linguagem e de um passo a passo explicativo, mas de criar conexão cultural” com as populações, diz Leme.

Divisão de receitas

A Ilha do Bananal fica no encontro dos biomas Cerrado e Amazônia e é composta por duas reservas indígenas, Inãwébohona e Parque do Araguaia.

De um total de 1,7 milhão de hectares, cerca de 250 mil correspondem à área de preservação que vai gerar créditos de desmatamento evitado, também conhecidos pela sigla REDD+. A maior ameaça ali são os incêndios.

Outros 500 mil hectares da ilha ficam alagados durante parte do ano, o que pode eventualmente dar origem a mais créditos utilizando outra metodologia de certificação.

A expectativa da Biofix é gerar cerca de 880 mil créditos por ano no projeto do Tocantins. Em vez da Verra, a certificadora que domina o segmento REDD+, a empresa escolheu a certificadora colombiana Cercarbono.

Leme afirma que o nome menos conhecido pode ter algum impacto no preço de venda, mas os colombianos são mais ágeis e estão acostumados a lidar com o mercado latino.

A companhia não revela como será feita a divisão dos recursos, afirmando apenas que ao menos 55% ou 60% ficam com a população local.

Essa conta varia de acordo com o projeto, diz Roveda. “Fazer a consulta num território com mil habitantes é uma coisa, num com 15 mil é outra. E tem outros custos, pois tem regiões que só são acessíveis por barco e assim por diante.”

Além das atividades de proteção, a ideia é usar os recursos para o fortalecimento de negócios verdes, como etnoturismo e turismo pesqueiro. Outro destino do dinheiro devem ser as mulheres que produzem o Ritxòkó, artesanato típico da ilha (na foto).

PL do carbono

O projeto de lei que estabelece o mercado regulado de carbono no Brasil, em tramitação no Congresso, também prevê algumas regras para o mercado voluntário (assim chamado pois dele participam as empresas que compensam suas emissões mesmo sem ter a obrigação).

Uma delas prevê uma divisão obrigatória mínima de 70% para as populações locais. Roveda afirma que, apesar da boa intenção, a medida pode trazer o efeito contrário ao desejado.

“Ninguém é contra repassar o máximo dos recursos, mas o desenvolvedor precisa levar em conta seus custos. Com um percentual estabelecido em lei, existe o risco de que os desenvolvedores sérios não consigam colocar um projeto em pé, abrindo o espaço para aventureiros.”

Muitos dos escândalos e fraudes em projetos de carbono pelo mundo que vieram à tona no último ano e meio envolveram empresas de pouco reconhecimento. Diversos relatos dão conta de comunidades enganadas por aproveitadores.

A Biofix não aborda as populações indígenas propondo o desenvolvimento de projetos, segundo Roveda. “Mas estamos presente onde acontecem essas discussões.”

A primeira conversa sobre o que viria a ser o projeto da Ilha do Bananal aconteceu na COP26, em Glasgow, num encontro entre as lideranças indígenas e representantes da companhia.

Leme afirma que o assunto tem despertado mais interesse e boca-a-boca entre as populações indígenas. Segundo ela, existe uma grande demanda represada.