Depois de quase dez anos, fundo nacional de biodiversidade faz primeira liberação

Mecanismo repassa recursos a populações tradicionais que protegem a natureza; total arrecadado foi de apenas R$ 9 milhões, mas expectativa é de crescimento com depósitos de empresas estrangeiras

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Quando uma empresa utiliza informações genéticas da fauna e flora brasileiras ou se baseia em saberes de povos tradicionais, as comunidades indígenas, quilombolas e pequenos agricultores que detêm esse conhecimento e protegem esse patrimônio devem ser recompensados. 

Foi com base nesse princípio acordado globalmente que o Brasil criou o Fundo Nacional de Repartição de Benefícios (FNRB), por meio de uma lei, em 2015. Quase dez anos depois, o veículo vai liberar recursos pela primeira vez.

A formalização da operação do fundo deve ocorrer ainda nesta quarta-feira em Brasília, em uma solenidade com a presença da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. 

“A lei criou regras facilitadas para quem usa a biodiversidade, com um mecanismo mais amigável para o pesquisador. Agora, precisamos fechar essa segunda parte, que é gerar benefícios e canalizá-los para a conservação da biodiversidade e para povos e comunidades tradicionais”, diz Henry Novion, diretor do departamento de Patrimônio Genético do Ministério do Meio Ambiente, ao Reset

A Convenção da Diversidade Biológica, criada junto com a do Clima durante a Rio-92, estabeleceu em 2010, por meio do Protocolo de Nagoia, regras para a chamada repartição de benefícios, ou seja, o repasse de parte dos recursos obtidos com recursos genéticos para o país de origem e eventualmente para populações tradicionais.

O Brasil foi um dos primeiros a criar uma legislação própria sobre o assunto. Ela estabelece que a repartição pode ser monetária, com uma transferência para o fundo, ou não-monetária, com o desenvolvimento de projetos de conservação ou transferência de tecnologias, por exemplo. 

No caso do repasse financeiro, o principal alvo são indústrias como a farmacêutica e a de cosméticos. Elas devem repassar 1% da receita líquida anual dos produtos que contenham algum patrimônio genético nacional. A obrigação recai apenas no produto final e não afeta quem produz insumos.

O FNRB tem hoje R$ 9 milhões, enquanto outros R$ 16 milhões foram movimentados para projetos. É um valor quase simbólico para um país que tem a maior diversidade biológica do mundo – mas somente com companhias nacionais contribuíram até aqui.

Um dos planos do governo brasileiro é apresentar o mecanismo em funcionamento na COP16 da Biodiversidade, que começa em duas semanas na Colômbia, e uma versão em inglês do sistema de registro para que empresas estrangeiras também comecem a pagar sua parte.

“Estamos com duas grandes expectativas: mostrar que o fundo vai começar a funcionar e internacionalizar nosso sistema [de gestão de patrimônio genético]”, diz Novion. A ideia é que o FNRB consiga fechar o ciclo, de modo que “a biodiversidade conservada e disponível para o uso sustentável, como pesquisa, gere os próprios benefícios para sua conservação.”

Uma divisão justa do dinheiro obtido com produtos baseados na biodiversidade é um dos pilares das discussões internacionais, e um desdobramento do tema deve ser um dos tópicos espinhosos da COP16: como repartir benefícios quando o ponto de partida são sequências genéticas digitais?

Primeiros desembolsos

O primeiro desembolso do FNRB será de R$ 2 milhões para o Prêmio das Organizações Guardiãs da Sociobiodiversidade, um edital lançado pelo MMA para reconhecer organizações que já atuam com temas ligados ao FNRB.

Serão beneficiadas 20 organizações neste ano – igualmente divididas entre os segmentos indígena, quilombola, agricultores familiares e de povos e comunidades tradicionais – e outras 20 no ano que vem. As inscrições, que vão até o início de dezembro, também servirão de mapeamento das iniciativas já existentes.

Outros R$ 4 milhões estão previstos para o Enraíza Bio, um programa de fortalecimento institucional para associações, cooperativas e organizações de povos indígenas, tradicionais e agricultores familiares. O objetivo é que, com esse apoio, elas possam acessar linhas de crédito como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf).

Novion, do MMA, afirma que parte da explicação para o tamanho do fundo é política.

O FNRB foi regulamentado em 2016, mas só em 2019 firmou contrato com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para administração dos recursos.

Nesta época, já no governo Bolsonaro, órgãos responsáveis pela indicação de representantes das populações beneficiárias para o comitê gestor foram extintos ou esvaziados.

Impossibilitado de completar essa instância máxima de decisão, o fundo ficou “congelado” pelos anos seguintes e foi retomado somente na troca de governo ocorrida dois anos atrás, afirma Novion. 

Capital estrangeiro

Agora 100% operacional, o passo seguinte é buscar dinheiro estrangeiro.

Quando uma empresa realiza uma pesquisa aproveitando a biodiversidade brasileira, ela precisa registrar seus resultados no Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e do Conhecimento Tradicional Associado (SisGen), uma plataforma criada para apoiar a fiscalização e o cumprimento da legislação. 

“Na COP16, queremos anunciar a versão em inglês do SisGen e abrir o prazo de um ano para que todas as empresas estrangeiras regularizem seus produtos aqui no Brasil”, diz Novion.

Há relatos de empresas estrangeiras que estão aguardando este sistema para começarem a aplicar recursos no fundo, segundo ele. “Então quando falamos em R$25 milhões é um valor muito pequeno frente ao tamanho do desafio que nós temos em termos de conservação da biodiversidade, mas estamos falando apenas de empresas brasileiras.”

Para o diretor, a diferença entre os R$ 9 milhões do fundo e os R$ 16 milhões em repasses não monetários se dá, especialmente, porque o fundo não estava funcionando. 

Quem escolhe fazer a repartição de benefícios via projetos conta com um desconto de 25% do que seria repassado para o fundo, mas tem sua obrigação quitada apenas após sua execução, o que pode levar anos. A aplicação no fundo, por sua vez, seria uma maneira mais rápida de cumprir seus compromissos. 

No médio a longo prazo, o objetivo é promover essa frente da bioeconomia. “Queremos mostrar que é fácil usar a biodiversidade brasileira, que as regras estão dadas, é previsível e você tem segurança jurídica.”

Ainda não há uma projeção de quanto o fundo é capaz de levantar, uma vez que não está disponível a informação do tamanho do mercado da biodiversidade brasileira, afirma Novion.