Crédito de biodiversidade: entenda esse (polêmico) financiamento da natureza

Má reputação do mercado de carbono respinga no mecanismo inovador, que desperta cada vez mais interesse no Brasil e no mundo

Crédito de biodiversidade: entenda esse (polêmico) financiamento da natureza
A A
A A

Proteger e restaurar a natureza vai demandar muito dinheiro: ao menos US$ 700 bilhões por ano, na estimativa das Nações Unidas. A maior parte desse valor virá de governos, com a reversão de subsídios que prejudicam a natureza, segundo o que foi acordado pelos países que fazem parte da Convenção da Diversidade Biológica da ONU.

Levantar os outros US$ 200 bilhões no setor privado vai exigir a adaptação de instrumentos que já existem – e criatividade para estabelecer novos. 

Os créditos de biodiversidade são uma ideia que vem ganhando força  como maneira de direcionar recursos privados para a conservação e restauração da natureza. Eles passaram a ganhar atenção redobrada de diferentes organizações com a aprovação do “Acordo de Paris da Natureza” em 2022, como ficou conhecido o Marco Global da Biodiversidade, e a pressão pela divulgação de relatórios financeiros que levam em conta o capital natural, como o proposto pela Taskforce on Nature-Related Financial Disclosure (TNFD).

Na mais recente Conferência da ONU sobre Biodiversidade, a COP16 de Cali, ficou evidente a popularidade desse novo tipo de ativos baseado na natureza. 

Nas salas de negociações, as divergências sobre as fontes de financiamento para os países em desenvolvimento impediram uma conclusão para a COP16. Do lado de fora, também ouviram-se muitas opiniões conflitantes sobre o papel dos créditos de biodiversidade, em incontáveis painéis e coletivas de imprensa.

Basicamente, eram dois os grupos: os favoráveis e os contrários à ideia.

A demanda pelos biocréditos, como também são chamados, pode chegar a US$ 7 bilhões em 2030, a depender dos avanços nos próximos anos, estima o Fórum Econômico Mundial. Mas, por enquanto, os projetos são poucos e esparsos ao redor do mundo – incluindo alguns no Brasil –, com menos de US$ 1 milhão movimentado em compras, estima a empresa de consultoria Bloomberg NEF. 

As dúvidas sobre esse mercado nascente ainda são muitas. O Fórum Econômico Mundial e a consultoria McKinsey lançaram na semana passada guias com boas práticas para as companhias identificarem os créditos de biodiversidade de alta integridade. 

Aqui, o Reset explica o que você precisa saber para acompanhar os créditos de biodiversidade em 2025. 

É igual ao crédito de carbono?

Não. Um crédito de carbono corresponde a uma tonelada de CO2 (ou o equivalente em outros gases de efeito estufa) evitada ou retirada do ar. Um crédito de biodiversidade pode representar várias medidas diferentes, como um aumento da população de uma espécie animal ou de microorganismos no solo. Tipicamente, essa mensuração da biodiversidade está associada à área em que é realizado o projeto gerador dos créditos, como uma fazenda, por exemplo.

A comparação com o mercado de carbono é inevitável – e as suspeitas que já são levantadas sobre esses novíssimos ativos, também. Os créditos de biodiversidade nascem à sombra dos problemas de integridade dos créditos de carbono – mais especificamente os de conservação florestal, conhecidos como REDD+ – e chegam acompanhados de ceticismo sobre suas métricas e impactos sobre povos indígenas e comunidades tradicionais.

A aplicação de ambos também é distinta. O principal uso dos créditos de carbono é na compensação de emissões. Como uma tonelada de CO2 é igual em qualquer lugar do planeta, uma companhia que tenha poluído na África do Sul pode anular seu impacto climático comprando créditos gerados na Amazônia.

Já no caso da biodiversidade, essa equivalência direta não existe. Não se espera que os créditos possam ser usados para fazer offsetting (com algumas exceções, como mostraremos abaixo).

O que é o crédito de biodiversidade, então?

O crédito é gerado a partir de resultados positivos na preservação ou restauração da diversidade biológica em uma determinada área, dentro de um período de tempo definido (normalmente contado em décadas).

Como não é viável auferir o impacto das atividades em todas as espécies presentes no local, algumas delas servem como indicadores da saúde daquele ecossistema. A quantidade de onças-pintadas em uma área do Pantanal, por exemplo, foi a métrica escolhida para um dos primeiros projetos implantados no Brasil.

“A onça-pintada serve como uma espécie guarda-chuva. ​​Se tem a presença daquele animal, tem uma cadeia de vida embaixo dele”, diz Hannah Simmons, fundadora da Ecosystem Regeneration Associates, empresa que desenvolveu a metodologia aplicada na iniciativa, realizada pela ONG Instituto Homem Pantaneiro.

Imagens capturadas por câmeras são analisadas por software para identificar o impacto na população dos felinos.

A particularidade dos indicadores, estreitamente relacionados às características locais, dificulta comparações diretas entre projetos, mesmo que estejam geograficamente próximos. Isso se estende aos créditos gerados em empreendimentos distintos.

A colombiana Terrasos emite um crédito de biodiversidade a cada 10 m² com o compromisso de proteger aquela área por 30 anos. “Uma unidade de biodiversidade representa um ganho ecológico que é tecnicamente gerenciado, financeiramente garantido e legalmente permanente. No caso colombiano, estamos falando de 30 anos. Nos Estados Unidos, são 99 anos, e em alguns outros países, 20 anos”, diz a fundadora e CEO da Terrasos, Mariana Sarmiento.

Para que serve?

Existem alguns casos em que os biocréditos podem ser utilizados para fazer offsetting, como acontece com os de carbono. Tipicamente, essa aplicação está sujeita a regulamentações.

Na Colômbia e nos Estados Unidos, por exemplo, eles são aceitos para compensar um prejuízo ambiental causado pela construção de obras de grande porte e grande impacto, como estradas ou linhas de transmissão de energia elétrica. 

Nesses casos, o período de permanência dos projetos e os indicadores acompanhados são definidos pela regulação de cada jurisdição. Cada crédito pode ser vendido apenas uma única vez e a transação é registrada no governo.

O segundo uso é o que gera mais controvérsias: a compra voluntária por parte de empresas ou organizações. 

Um cenário descrito pelos defensores dos créditos é usar esse mecanismo em vez de desenvolver um projeto filantrópico, por exemplo. Caso as metodologias sejam robustas e o impacto positivo seja verificado, essa aplicação ofereceria mais garantias de que os recursos foram bem empregados.

Outra possibilidade seria adquirir créditos como uma forma de boa cidadania corporativa, para demonstrar sua preocupação com a natureza. 

Marco Lambertini, CEO do Nature Positive, uma iniciativa global para a recuperação da biodiversidade até 2030, afirma que existe uma ordem a seguir quando o assunto é proteger e restaurar a natureza: as empresas devem evitar causar danos, reduzir os que forem possíveis, restaurar por projetos próprios e, só então, compensar apenas a parcela mínima e residual do que for inevitável. 

E é eficaz?

Depende de quem responde. As principais críticas são relacionadas ao uso desses créditos como forma de compensação, uma vez que o dano causado à fauna e flora local não poderiam ser retomados integralmente em poucas décadas. 

Para Mark Opel, líder de finanças da ONG Campaign for Nature, esse é um mercado que nasce fadado ao fracasso: “Apesar das diversas orientações publicadas para que esses créditos não sejam usados para a compensação, é preciso fazer a pergunta: se as empresas não usarem para compensar, por que vão comprá-los?”. 

Opel afirma que o mercado da biodiversidade abre margem para o greenwashing e torna-se uma distração, enquanto os esforços deveriam estar voltados para o endurecimento das leis e da regulação. 

Várias dessas preocupações surgem na esteira dos problemas existentes encontrados nos projetos de crédito de carbono no mundo. Mas “o mercado da biodiversidade não é o ‘carbono 2.0’”, diz Amelia Fawcett, copresidente do Painel Consultivo Internacional sobre Créditos de Biodiversidade (IAPB). 

Os participantes desse mercado defendem que o financiamento da natureza – o que inclui os créditos de biodiversidade – está mais próximo de investimentos em infraestrutura do que dos créditos de carbono, uma vez que envolve uma perspectiva de longo prazo, construção, recuperação e manutenção. 

Criado há menos de dois anos, o IAPB reúne 25 especialistas ao redor do mundo – do Brasil, faz parte Ilona Szabó de Carvalho, do Instituto Igarapé – e desenvolveu um guia com princípios de alta integridade a serem observados nos biocréditos, diante das diversas metodologias existentes. 

Zoom no Brasil

Como país mais megadiverso do mundo, existe a expectativa de que o Brasil seja um dos grandes centros desse mercado emergente. 

“O problema não é esse mercado existir, mas a ordem em que as coisas serão feitas e em quais condições”, diz Carlos Augusto Ramos, pesquisador na Universidade Federal do Pará (UFPA) e ex-diretor de gestão de florestas públicas no  Instituto de Desenvolvimento Florestal e da Biodiversidade (IDEFLOR-Bio) paraense.

“Há uma série de perguntas a serem feitas: quem faria a gestão desses créditos? Quem iria monitorar as empresas envolvidas? Como seriam garantidos os direitos indígenas, da fauna e da flora?”.  

O Paraná foi o primeiro governo subnacional do mundo a estabelecer uma política para créditos de biodiversidade, anunciada durante a COP16. O objetivo do projeto, segundo o governo do Estado, é “compensar a pressão ambiental causada pela operação de empresas e indústrias por meio de serviços ambientais prestados à preservação, conservação e à restauração ambiental”. A proposta foi feita em parceria com a Coalizão Life de Negócios e Biodiversidade e o Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE).

Mais ao norte do país, a Associação Sociocultural Yawanawá (ASCY), em parceria com a Wildlife Works e a Forest Trends, desenvolveu uma metodologia própria para unidades de gestão de biodiversidade.

Apesar das diversas discordâncias sobre os créditos de biodiversidade, é consensual a necessidade de mobilizar mais capital privado para a recuperação e preservação de diferentes ecossistemas e de envolver comunidades indígenas e populações locais no desenvolvimento das soluções. 

A necessidade de recursos é urgente. Estados Unidos e Austrália são as exceções em uma longa lista de países em desenvolvimento ou pobres que detêm o que resta da diversidade biológica no planeta.

Os biocréditos podem não ser parte da solução do problema – mas, por enquanto, são uma tentativa que vem atraindo cada vez mais interesse.

Imagem: Instituto Homem Pantaneiro