A COP16 da Biodiversidade recomeça nesta terça-feira (25) em Roma, após ter sido suspensa na manhã do último 2 de novembro. A conferência das Nações Unidas ocorreu em Cali, na Colômbia, e foi interrompida sem uma conclusão depois de quase 200 países fracassarem em chegar a um consenso sobre a mobilização de recursos para preservar e restaurar a biodiversidade ao redor do globo.
Na ocasião, os países tiveram duas semanas para negociar. Agora, terão apenas três dias, com a previsão de encerramento para esta quinta-feira (27).
Negociadora-chefe da delegação brasileira na COP16, foi Maria Angélica Ikeda quem comunicou na última sessão que o Brasil não estaria disposto a continuar discutindo outros pontos até que a questão do financiamento fosse resolvida.
Àquela altura a conferência já durava 10 horas. Diplomatas exaustos deixavam a plenária final para pegar seus voos, e pouco depois a sessão foi declarada suspensa.
O principal obstáculo para a nova rodada de negociações será a quebra de confiança entre as partes, e no centro da disputa está o mesmo desafio da COP do Clima: dinheiro.
Em novembro passado, a COP29, em Baku, terminou com um acordo amplamente criticado sobre o volume de recursos a ser mobilizado dos países ricos para os pobres. Parte do problema terá de ser resolvido na COP30, em Belém.
“Se chegarmos em Roma exatamente no mesmo estágio em que estávamos em Cali, corre o risco grande de termos um grande fracasso novamente”, diz ao Reset Ikeda, diretora do departamento de meio ambiente do Itamaraty e chefe da delegação brasileira – já que a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, não estará presente.
Em 2022, os países firmaram o Marco Global da Biodiversidade, que inclui metas para a preservação da natureza. Para executar os planos nacionais de restauração e conservação, os Estados-membros concordaram em, juntos, reverter anualmente US$ 500 bilhões de subsídios danosos à biodiversidade até 2030 e levantar outros US$ 200 bilhões de diferentes fontes, entre público e privado, para aumentar os recursos disponíveis para as estratégias.
Hoje, as doações e os financiamentos concessionais da Convenção da Diversidade Biológica (CDB) são geridos sob o Global Environment Facility (GEF), veículo do Banco Mundial. Países em desenvolvimento, que são os beneficiários, criticam a falta de representatividade no conselho do fundo e o poder de decisão dos desenvolvidos sobre seu uso.
A presidente da COP16 e ex-ministra do Meio Ambiente da Colômbia, Susana Mohammad, observou, em nota, que discussões regionais e consultas bilaterais entre Cali e Roma deixaram evidente a divergência de compreensão entre os países sobre o instrumento financeiro a ser definido, e se ele seria complementar ou suplente ao GEF.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista com Ikeda:
Os problemas do GEF – e a pausa
O estopim da pausa decretada na sessão plenária final da COP16 foi o tema de mobilização de recursos.
O artigo 21 da CDB prevê o estabelecimento de um mecanismo financeiro, que deveria ter sido regulamentado na primeira COP, em 1994, e nunca foi feito. O Brasil e outros países estão tentando começar um processo para que se estruture esse mecanismo financeiro do artigo 21, ainda que 30 anos atrasado, e isso gera muita frustração.
Nós temos usado o Global Environmental Facility como um mecanismo interino há mais de 30 anos para financiar a convenção.
O GEF tem que cuidar de diversas áreas ambientais. Ele é um mecanismo financiador das convenções de clima, biodiversidade, desertificação, mercúrio e poluentes orgânicos persistentes. Já tem uma carga de trabalho muito grande.
Além disso, a governança do conselho do GEF é problemática do ponto de vista dos países em desenvolvimento. Os desenvolvidos argumentam que a governança é equânime, porque há um número semelhante de assentos para os dois grupos. Mas na prática Japão, Estados Unidos e Alemanha, por exemplo, têm assento próprio, enquanto os países em desenvolvimento têm um esquema de rotação.
Há um único assento para os oito países da América Central e México, outro para as 20 ilhas do Pacífico. O Brasil, que tem a maior cobertura florestal tropical do planeta, o maior reservatório de água doce e é reconhecido por muitos como o país mais biodiverso do mundo, tem que compartilhar um assento com Equador e Colômbia.
As prioridades para projetos de financiamento ambiental nos nossos países têm que ser ditadas por nós e não pelos outros que não conhecem nossa realidade.
O fundo que foi criado para o Marco Global, o Global Biodiversity Framework Fund (GBFF) [que faz parte do GEF] recebeu pouquíssimo dinheiro. O nível de promessas dos países é muito baixo quando comparado às metas de financiamento estabelecidas pelo Marco.
Divisão entre membros
Queremos uma decisão robusta [para a COP16] e nós havíamos chegado a um documento que consideramos aceitável. Na plenária, votamos uma decisão após a outra. Quando chegamos à decisão de mobilização de recursos, porém, os países desenvolvidos recusaram.
Desenhamos essa decisão com seus diplomatas, e no final, descobrimos que, no fundo, eles não tinham mandato [político] para adotá-la. Houve uma quebra de confiança para o Brasil. Foi por isso que, no discurso na plenária naquele momento, o Brasil disse que não aceitaria adotar mais nenhuma decisão, enquanto nós não resolvêssemos o problema daquele documento.
Eu pedi a explicação [dos problemas vistos pelos países contrários] e nunca tive essa resposta. Pedimos essa explicação em outubro e não tivemos qualquer resposta até o momento.
Nível ministerial
A presidente da COP16, Susana Muhamad, tem conduzido consultas com as regiões e com alguns países específicos, inclusive no segmento ministerial. Mas entendemos que deixar para os ministros a decisão em Roma não parece boa ideia. Nem todos os países têm uma ministra conhecedora do assunto como a nossa [Marina Silva]. Há várias dificuldades.
Sobretudo em países em desenvolvimento, há ministros que não falam inglês, não dominam o assunto ou estão há pouco tempo no cargo. Existe, então, uma desigualdade em relação aos os ministros europeus, que inclusive estarão perto de Roma, farão voos curtos, não terão problema de fuso horário e não têm problema de financiamento.
Recrudescimento na sustentabilidade?
Fizemos um longo caminho até aqui. De 1972, quando tivemos a primeira conferência sobre questões ambientais, até esta década dos anos 2020.
Criamos muitos regimes jurídicos e tínhamos uma linguagem mais favorável aos países em desenvolvimento, com uma maior solidariedade, sobretudo nos anos 1990. As convenções de biodiversidade e da mudança do clima têm artigos que dão conta de considerar as necessidades de desenvolvimento desses países e de que eles sejam financiados para fazer frente à crise ambiental.
A sensação é de que há um recrudescimento por parte dos países desenvolvidos, com uma dificuldade de demonstrar a solidariedade e a generosidade que nós precisamos que eles tenham. Essa falta de apoio e desse olhar mais compreensivo à causa e à realidade dos outros, prejudica muito, acredito.
A perspectiva do Brasil é de um país em desenvolvimento grande, poderoso como potência ambiental, que atrai já bastante recurso. Mas estamos olhando para o mundo inteiro, para todos aqueles que dependem desse financiamento para poder fazer uma lição de casa melhor.
Fundo político
Os Estados Unidos não são parte da CDB, assim como não são parte de diversas convenções ambientais. Eles ainda estão no Acordo de Paris e na Convenção do Clima porque toda renúncia de tratado multilateral leva um tempo para ter efeito.
O que acontece em um país importante como os Estados Unidos, pode, claro, ter impacto sobre o plano de fundo contra o qual nós estamos tendo diversas negociações ambientais.
Esse tipo de movimento não é positivo, mas todos os que estão comprometidos com a causa ambiental e com a causa dos países em desenvolvimento, temos que nos unir e fazer uma aliança para salvar os regimes ambientais de qualquer tentativa de distúrbio.
O Brasil, por isso mesmo, está sempre muito aberto a acumular textos e elaborar propostas com outros países, até com os que estejam do outro lado da mesa, para que consigamos tomar as decisões. Não acho que seria bom para ninguém, sobretudo para os países desenvolvidos, depois do que aconteceu em Cali, que essa COP 16.2 não tenha resultado, que eles não sentem para negociar seriamente e apontem quais são os problemas que eles veem nessas minutas que estão sobre a mesa.
As conquistas de Cali
A COP em Cali teve decisões memoráveis. Nós pudemos adotar uma declaração sobre os afrodescendentes [de incluí-los em documentações oficiais], por exemplo, que foi co-patrocinada por Colômbia e Brasil.
Houve também a criação de um órgão subsidiário para os povos indígenas e comunidades locais. Os conhecimentos tradicionais sobre o uso da biodiversidade e seus benefícios já foram utilizados sem autorização dessas pessoas, inclusive para a criação de produtos que geraram rendas astronômicas em outros países.
Também foi histórica sobre o sequenciamento genético digital, que é conhecido pela sigla DSI, em inglês. Dentro desta decisão, foi constituído o Fundo Cali, no qual o setor privado aportará os recursos provenientes do uso de DSI, e esse fundo, nós entendemos, será acessado pelos países de maior biodiversidade.
O que faltou, realmente, foi o tema de mobilização de recursos.