OPINIÃO

Bioeconomia: Brasil dá passo importante na valorização do conhecimento tradicional

Nova Resolução do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético é avanço essencial para que comunidades tradicionais e povos indígenas sejam recompensadas pelo uso da biodiversidade

Indígena brasileiro na floresta amazônica

Uma das discussões mais relevantes e que possuem impacto direto na inovação é aquela relacionada à forma de uso e proteção de conhecimentos tradicionais associados (CTA).

A integração entre saberes tradicionais e os avanços da ciência e tecnologia pode constituir um dos caminhos mais inovadores para o desenvolvimento sustentável. Com frequência, o conhecimento acumulado pelas populações locais, refletido em seus modos de vida e práticas culturais, revela soluções valiosas para desafios contemporâneos da indústria alimentícia e farmacêutica, ampliando as fronteiras da inovação e reforçando a importância da diversidade cultural e biológica.

O Brasil possui a maior biodiversidade do mundo e uma sociobiodiversidade invejável, com centenas de povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores familiares. São estas pessoas que detêm o conhecimento tradicional associado, previsto na legislação brasileira que disciplina o acesso e repartição de benefícios no Brasil (conhecido globalmente pela sigla em inglês ABS).

Um dos grandes desafios enfrentados por pesquisadores e empresas é identificar o acesso ao conhecimento tradicional associado (CTA), especialmente quando proveniente de fontes secundárias — aqueles definidos pela lei como obtidos em feiras, publicações, inventários, filmes, artigos científicos, cadastros, entre outros.

É importante destacar que, na maioria dos casos, o CTA adquirido por meio de fontes secundárias possui origem identificável, o que exige a observância da legislação vigente. Ou seja, é necessário obter o consentimento livre, prévio e informado (CPI) de pelo menos um dos provedores do conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético.

Inovação brasileira

O marco legal de ABS no Brasil é considerado inovador, especialmente pelo uso do SisGen (Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e do Conhecimento Tradicional Associado), uma plataforma eletrônica autodeclaratória que dispensa autorização prévia e facilita o acesso e rastreabilidade dos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados. 

No entanto, foram detectados, ultimamente, diversos equívocos nos cadastros desse sistema eletrônico.

Para reduzir tais inconsistências, a nova Resolução nº 47/2025 do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGen) estabelece a criação de um banco de dados de referência contendo informações sobre CTAs e seus provedores, além da possibilidade de o usuário consultar voluntariamente a secretaria executiva do CGen para verificar se determinado conhecimento já possui provedor vinculado.

A criação desse banco de dados trará as informações em versões digitais, disponíveis para consulta por meio de duas listas. O usuário poderá indicar se possui interesse ou não em utilizar o procedimento de consulta voluntária ao CGen para a identificação de provedor de conhecimento tradicional associado.

Se decidir por este caminho, o usuário poderá aguardar o resultado da consulta voluntária ao CGen ou seguir com o cadastro de acesso a conhecimento tradicional associado de origem não-identificável, sem aguardar a conclusão do procedimento de consulta voluntária ao CGen. O resultado não deverá tardar mais do que 60 dias.

A Convenção da Biodiversidade

Vale lembrar que a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), criada na Rio-92 junto com a do Clima e a da Desertificação, foi o primeiro grande tratado internacional a disciplinar premissas relacionadas ao acesso a recursos genéticos e a repartição de benefícios, inclusive por utilização de conhecimento tradicional associado.

Entre seus objetivos centrais, a CDB estabeleceu que os países signatários devem envidar esforços para: 

  • Conservar a diversidade biológica;
  • Assegurar o uso sustentável de seus componentes; e
  • Garantir a repartição justa e equitativa dos benefícios decorrentes da utilização dos recursos genéticos, mediante, inclusive, o acesso adequado a tais recursos e a transferência apropriada das tecnologias pertinentes.

O Brasil, como um dos primeiros signatários da CDB, criou a sua legislação local e busca contribuir para que os povos e comunidades tradicionais sejam respeitados e fortalecidos, assegurando, ao mesmo tempo, a valorização, o respeito e a preservação dos conhecimentos tradicionais, bem como a efetiva participação de seus detentores nos processos de tomada de decisão e no usufruto dos resultados gerados.

Garantindo direitos

A disciplina jurídica sobre o acesso e a repartição de benefícios relacionados ao Conhecimento Tradicional Associado (CTA) representa um avanço fundamental na consolidação de práticas mais justas e equilibradas entre o Estado, a sociedade e os detentores desse patrimônio imaterial. A Resolução nº 47/2025, ao criar um banco de dados de referência e um procedimento de consulta voluntária, oferece um instrumento inovador para reduzir inconsistências e fortalecer a segurança jurídica no uso do CTA, sem desconsiderar a complexidade de sua identificação e vinculação.

Mais do que uma medida administrativa, trata-se de um passo decisivo para assegurar a efetiva valorização dos povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores familiares, reconhecendo seu papel como guardiões da sociobiodiversidade brasileira. Ao mesmo tempo, a norma reafirma a importância da cooperação entre pesquisadores, indústria e órgãos reguladores, promovendo um ambiente mais transparente e confiável para a pesquisa científica e para a inovação tecnológica.

Nesse sentido, a experiência brasileira reafirma seu protagonismo internacional no campo da biodiversidade e do regime de acesso e repartição de benefícios (ABS), ao conjugar proteção jurídica, inovação regulatória e valorização cultural. O desafio, daqui em diante, será garantir que os mecanismos criados não apenas cumpram seu papel normativo, mas se traduzam, de forma concreta, em instrumentos de inclusão, equidade e desenvolvimento sustentável.

* Juliana Zamboni e Luiz Ricardo Marinello são sócios de Marinello Advogados