A indústria de produção de ovos tem uma prática bastante controversa: o descarte de pintinhos machos, por não servirem para botar ovos e nem por sua carne, com métodos de abate cruéis: por trituração ou esmagamento.
Uma nova tecnologia chamada “sexagem in-ovo” promete resolver parte desse problema: ao identificar o sexo dos filhotes no estado embrionário, o descarte acontece antes da eclosão do ovo, em um estágio em que o animal não sinta dor. Ela acaba de chegar ao Brasil, contratada por uma grande granja de ovos orgânicos, a Raiar.
A criação comercial de aves alimenta duas indústrias: de ovos (chamada de avicultura de postura) e de frangos de corte. Os filhotes machos, porém, não têm valor comercial para nenhuma das duas, pois além de não botar ovos, levam mais tempo para atingir o peso para a indústria de carnes, não sendo uma alternativa economicamente viável.
A Raiar recebeu nesta semana o primeiro lote de pintainhas – como são chamadas as fêmeas recém-nascidas – que passaram pelo processo de sexagem. A tecnologia foi desenvolvida pela empresa alemã Agri Advanced Technologies (AAT) e usa imagem hiperespectral para identificar o sexo do embrião com base na coloração da plumagem, em um processo parecido a de um scanner.
“Abrimos um novo capítulo na avicultura de postura brasileira e queremos incentivar o setor a ir neste mesmo caminho”, diz Marcus Menoita, CEO e cofundador da Raiar. “A sexagem in-ovo da AAT é o que encontramos de mais eficaz e economicamente viável.”
A sexagem in-ovo é nova no mundo, com poucas empresas oferecendo a tecnologia. A AAT tem 14 máquinas instaladas, sendo 12 na Europa e duas nos Estados Unidos. A da Raiar é a primeira da empresa no Hemisfério Sul. Entre as empresas concorrentes estão NIR, Hypereye, Inovatec, In ovo, TeraEgg e LIVEgg.
“As tecnologias de sexagem in ovo fornecem uma abordagem mais ética e sustentável à produção de ovos”, diz relatório da Animal Equality Brasil, organização que defende o fim da prática de abate de animais por trituração.
Tecnologia
As granjas produtoras de ovos compram pintainhas de empresas chamadas incubadoras, que fazem a fertilização de ovos para linhagens de galinhas poedeiras – após fertilizados, esses ovos não servem para o consumo humano.
A Raiar não tem uma incubadora própria e, por isso, adquire pintainhas de um fornecedor, a Hy-Line do Brasil, uma empresa do mesmo grupo da AAT. É lá que a máquina de sexagem foi instalada para fazer a testagem dos ovos.
Ela usa um método baseado em espectroscopia. Espectros de luz do conteúdo dos ovos são captados e os padrões são correlacionados com modelos pré-estabelecidos por um algoritmo. Assim, é capaz de detectar diferenças na coloração das penas entre os embriões machos e fêmeas, de forma não invasiva.
A tecnologia é voltada especificamente para galinhas de linhagem marrom, pois machos e fêmeas possuem diferenças na cor das penas. Com as galinhas poedeiras brancas não é possível fazer essa distinção, pois não há esse marco de diferenciação entre os sexos. No Brasil, estima-se que a avicultura poedeira seja composta 80% por galinhas brancas e 20% por marrons – a produção da Raiar é composta apenas por galinhas marrons.
“São crescentes as preocupações sobre a destinação dos machos, um importante tema de bem estar animal. Esse é um avanço semelhante à iniciativa de ‘saída das gaiolas’”, diz Jorg Hurlin, diretor-geral da AAT. Ele se refere ao sistema de criação cage free, em que as galinhas não são criadas em gaiolas, mas sim soltas, oferecendo um ambiente mais livre e confortável.
A Animal Equality Brasil aponta que há outros métodos de sexagem. Os genéticos usam técnicas de biologia molecular, como a reação em cadeia da polimerase (PCR), para analisar marcadores de DNA específicos associados ao sexo do embrião. Há também métodos endocrinológicos, que analisam os níveis hormonais no ovo para determinar o sexo, e tecnologias avançadas de imagem, que, combinadas com algoritmos de aprendizado de máquina, permitem a identificação de características específicas do embrião.
“Essas tecnologias oferecem vantagens significativas sobre os métodos tradicionais de sexagem de pintinhos, incluindo maior precisão e identificação em estágio inicial, diminuindo ou mesmo eliminando o descarte de pintinhos machos”, diz a organização.
Hoje, a indústria de avicultura poedeira usa métodos manuais baseados em características meramente visuais para identificação do sexo dos pintinhos assim que nascem, por meio de características da cloaca ou das penas. As fêmeas são vendidas para granjas de ovos e os machos são processados e utilizados na alimentação animal e como fertilizante na agricultura.
Esses métodos de sexagem tradicionais, porém, apresentam riscos de bem estar-animal, pois são suscetíveis a causar lesões, estresse, imprecisões e demora na determinação do sexo, segundo a Animal Equality Brasil. “Tecnologias de sexagem in ovo oferecem uma solução promissora”, diz o relatório.
Investimento
A Raiar não divulga o investimento específico na implementação do sistema de sexagem, apenas valores totais investidos em tecnologias voltadas ao bem-estar animal e qualidade do produto.
Entre elas está o que chama de “playground” do berçário das aves, para incentivar voos e fortalecer a musculatura desde os primeiros dias de vida; a sala de ração automatizada e programada para o balanceamento de dietas; e o carimbo nas cascas dos ovos com o nome da marca e a validade a partir do dia da postura do ovo (e não da data de embalagem).
Desde sua fundação, há quatro anos, a empresa investiu R$ 180 milhões em infraestrutura e tecnologias. Para os próximos dois anos projeta o investimento de outros R$ 70 milhões.
“Cada vez mais, o consumidor quer saber o que compra, como foi produzido e de onde vem para fazer escolhas. Nossa experiência mostra que cada vez que trazemos informações claras sobre nosso negócio, elevamos uma barra na régua da confiabilidade da marca”, diz o CEO da Raiar. A produção da companhia é totalmente orgânica, desde o milho para alimentação livre de agrotóxicos, até a criação sem uso de hormônios e gaiolas.
A empresa vem dobrando de tamanho e diz que não repassará o valor do investimento na sexagem in-ovo para o consumidor final, que o custo será diluído e pago com o crescimento das vendas. “Apostamos no volume”, diz Menoita.
Ele diz que o acordo com a AAT envolve confidencialidade dos termos, mas faz uma conta baseada no custo europeu da tecnologia para explicar a viabilidade econômica. Com custo de 2 euros por ovo fértil testado, o custo em real seria próximo de 0,02 centavos de reais por ovo considerando a vida produtiva da galinha (de 80 a 100 semanas) e de produção (440 ovos).
A Raiar alcançou faturamento de R$ 40 milhões em 2024 e, para este ano, a meta é chegar nos R$ 100 milhões. Hoje a empresa tem 400 mil aves com uma produção de 3 milhões de ovos por mês. Os planos de expansão preveem chegar a 2 milhões de aves – a empresa não estima em que período.
Legislação
No Brasil não há nenhuma legislação específica sobre o descarte de aves, mas há propostas no Congresso Nacional e na Assembleia Legislativa de São Paulo – o Estado é o maior produtor de ovos do país.
Na Câmara dos Deputados tramita o projeto de lei 783/24, que proíbe o descarte de pintos machos por meio de métodos cruéis como trituração, eletrocussão, sufocamento ou meios similares. O texto prevê que, quando houver uma tecnologia de sexagem in ovo comercialmente disponível, os incubatórios e as empresas que comercializam aves recém-nascidas deverão descartar os ovos até o sexto dia após a incubação. A proposta na Assembleia de São Paulo segue a mesma linha.
Na Europa há legislações sobre o tema. A sexagem in-ovo é obrigatória na Alemanha desde 2022, para todas as linhagens de galinhas poedeiras. A prática de descarte de pintinhos machos é proibida no país.
Um ano depois, a França aprovou um decreto que proíbe o descarte de pintinhos por meio de trituração. O governo investiu 10 milhões de euros para financiar tecnologias
de sexagem in-ovo, segundo a Animal Equality Brasil. A Suíça proibiu a trituração em 2019 e uma lei similar na Itália vai entrar em vigor em 2026.
“A colaboração entre pesquisadores, especialistas da indústria e entidades reguladoras é crucial para garantir o sucesso da implementação [de tecnologias de sexagem in-ovo]”, diz a Animal Equality Brasil.