A iniciativa que quer desenrolar o 'escopo 3'

Batizada de CarbonPrime, plataforma quer atacar um dos principais desafios do net zero: incentivar a redução de emissões em cadeias de fornecimento complexas

A iniciativa que quer desenrolar o 'escopo 3'
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(Este texto foi publicado em primeira mão na newsletter Carbono Zero. Inscreva-se aqui.)

Um dos maiores desafios da jornada de descarbonização é o chamado “escopo 3”, que diz respeito às emissões indiretas de gases de efeito estufa, seja na cadeia de valor ou no uso dos produtos. 

É onde se encontra o grosso das emissões para a maioria das companhias. Mais especificamente, o equivalente a 11,4 vezes das emissões diretas, na média, segundo dados do CDP. 

A dificuldade já começa na medição, que tipicamente é feita com base em estimativas. Outro ponto é: como dividir de forma efetiva a responsabilidade pela mitigação ao longo de cadeias complexas, formados por diversos elos que se entrelaçam? 

Uma iniciativa em gestação há mais de dois anos, batizada de CarbonPrime, quer resolver esse problema — começando pela contabilidade dessas emissões. 

Uma “prova de conceito” mediu as emissões geradas na cadeia para a produção de 2,5 mil toneladas de nuggets de frango fabricadas pela JBS. 

A quantidade é minúscula perto da escala de produção da gigante de alimentos, mas o projeto-piloto é emblemático por conseguir medir os gases de efeito estufa lançados na atmosfera ao longo da cadeia, unindo informações exatas de cada um dos fornecedores envolvidos no processo. 

O projeto é resultado de uma colaboração da JBS com a Bayer, que faz o processamento das sementes de soja e milho, e a Amaggi, que faz o cultivo dos grãos que se tornarão ração para os frangos que serão transformados no produto final. A Rumo, de logística rodoviária, também participa do projeto. 

“No final das contas, escopo 3 é sempre o escopo 1 e 2 de alguém”, afirma Maria Fujihara, CEO e fundadora da Sinai Technologies, plataforma de software para descarbonização que operacionalizou a medição e o compartilhamento de informações. 

(Os escopos 1 e 2 dizem respeito, respectivamente, às emissões diretas das empresas e aquelas geradas pela energia utilizada.) 

Estimativa versus realidade

Tipicamente, para medição do escopo 3 as empresas utilizam chamados ‘dados secundários’, estimativas e extrapolações feitas a partir de diversas informações de setores de atividade e localização geográficas dos fornecedores. 

Isso não é necessariamente um problema — pelo contrário. É uma forma de evitar que as empresas aleguem não ter visibilidade sobre esses dados e deixem de tomar providências para endereçar sua responsabilidade pelas mudanças climáticas. 

A questão é que os dados secundários, baseados em análise de ciclo de vida dos produtos, usam projeções bastante conservadoras, sempre considerando o maior potencial de emissões.

Fujihara dá um exemplo hipotético: uma das técnicas para estimar o escopo 3 é avaliar o setor de atuação da empresa que consta numa determinada nota fiscal paga pela empresa. 

Caso se trate de um posto de combustível e não haja especificação do produto, esses cálculos partem do princípio de que se trata do principal produto vendido pelo estabelecimento e o com maior fator de emissão – no caso, diesel ou gasolina. 

“Quando não se tem controle e não se olha no detalhe, é importante que seja assim, porque afinal em se tratando de mudança climática é melhor estimar para cima do que para baixo”, afirma Fujihara. 

“Mas, ao longo da cadeia, essas nuances todas vão se somando e no fim o número [de escopo 3] acaba ficando muito grande na ponta.”

Aos números

No caso da prova de conceito do CarbonPrime, os dados secundários resultavam num escopo 3 de 700% a 900% maior para os nuggets do que o que foi efetivamente medido. 

A amostra tem seu viés: para fazer o primeiro cálculo, a iniciativa considerou apenas a fatia de produção feita diretamente por cada um dos elos, como uma forma de assegurar a robustez dos dados. (Por isso, a quantidade reduzida de produto final envolvida no processo.)

Por exemplo, no caso da Amaggi, foram considerados apenas a soja e o milho que vêm de suas próprias fazendas, sem levar em conta o que é produzido por pequenos e médios produtores. Evidentemente, essa amostra tende a ter padrões mais elevados de sustentabilidade que o geral. 

Mas ainda assim é importante enxergar como os dados podem destoar da bibliografia. 

Do plano à ação

A ideia do CarbonPrime é fazer com que as empresas não “congelem” diante de um número colossal, levando ciência para tomada de decisão de investimento para a redução de emissões. 

“Investir em oportunidades de redução de emissões é como qualquer outro investimento. Se estou comprando ações de uma empresa, quero saber o desempenho dessa empresa específica”, afirma Alasdair Were, da Associação Internacional de Comércio de Emissões (IETA), que é parceira técnica e participou da validação dos dados da CarbonPrime. 

“Dados secundários, como o desempenho do setor e o histórico da indústria, são relevantes. mas estão longe de ser adequados para justificar o investimento em uma ação específica”.

O objetivo final do CarbonPrime é criar um novo ativo ambiental e digital, representativo de uma redução de emissões dentro da cadeia produtiva. Dessa forma, uma empresa como  a Amaggi ou a JBS poderiam comprar um ‘token’ de redução de emissão para incentivar a descarbonização na cadeia. 

Isso resolveria um problema hoje patente, que é o fato de que ao longo da cadeia as empresas ‘acumulam’ o escopo 3. Na medição do CarbonPrime é possível alocar a parcela das emissões indiretas envolvidas em cada elo. 

Esses tokens seriam diferentes dos créditos de carbono tradicionais. Normalmente vindos de fora da cadeia de produção, eles são considerados ‘offsets’, ou compensações. Os tokens seriam uma forma de estimular o ‘insetting’, que é a redução dentro da própria cadeia de valor. 

Próximas fases

A iniciativa foi idealizada pela Sumitomo Corporation Americas, que, no futuro, ficaria a cargo da operacionalização desses tokens. O plano é conectar esse sistema ao Climate Warehouse, uma iniciativa do Banco Mundial para medir emissões. 

A próxima fase da prova de conceito vai incluir produção de sementes, produção de fertilizantes, pequenos e médios agricultores, produtos de couro, entre outros. 

O grupo disponibilizará os resultados para auditoria e publicará um ‘white paper’ com a estrutura de alocação desenvolvida — que ainda pode ser aperfeiçoada. Eles estão em conversas com algumas da ‘Big Four’ de contabilidade e pretendem ter os resultados auditados ainda este ano. O projeto está aberto para entrada de novos participantes.