ESPECIAL: Agro se prepara para regra antidesmatamento da UE

Empresas investem em sistemas de rastreabilidade, começam a cobrar ação coordenada do governo e pedem "regionalização" do risco atribuído ao Brasil

Plano para acabar com desmatamento associado à produção de commodities agrícolas recebe críticas
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Uma nova regra europeia que proíbe a comercialização no bloco de produtos agrícolas associados ao desmatamento agora tem prazo para entrar em vigor: 30 de dezembro de 2024. 

A partir desta data, exportadores de soja, carne bovina, cacau, café, óleo de palma, borracha e madeira – além de seus derivados, como móveis e chocolate – terão que comprovar que os produtos não vieram de áreas que foram desmatadas após o último dia de 2020. 

A medida vem recebendo duras críticas do setor agropecuário brasileiro, especialmente pelo fato de contemplar também o desmatamento legal, autorizado pelo Código Florestal brasileiro, e pelos custos associados às regras de compliance. 

Mas, com o texto convertido em lei, as empresas brasileiras vêm se preparando para atendê-la. De um lado, associações setoriais e a diplomacia se articulam para tentar negociar condições menos restritivas ao Brasil. De outro, as companhias buscam entender como funcionarão as regras na prática e apostam em iniciativas de rastreabilidade. 

Países classificados como de maior risco de desmatamento na legislação europeia enfrentarão condições mais restritivas para entrada no bloco. Um dos principais pleitos do setor é que, em vez de haver uma classificação de risco de desmatamento por país, ela seja regionalizada. 

“Sem prejuízo da necessidade de conservação da floresta em pé em todos os biomas, há muito mais pressão de desmatamento na Amazônia do que em áreas já consolidadas como a Mata Atlântica, por exemplo, e algumas regiões do Cerrado”, afirma a advogada Lina Pimentel, sócia responsável pela área ambiental do escritório Mattos Filho.

Inicialmente, a medida da União Europeia vale apenas para áreas de florestas – o que, no Brasil, recairia mais sobre o bioma amazônico e a Mata Atlântica. Mas, se as commodities vindas de todo o Brasil tiverem o ônus de fazer a comprovação de origem, isso pode gerar custos adicionais e reduzir a competitividade para entrada no bloco.

A previsão é que, um ano após a entrada em vigor, a regra seja revisada e possa ser ampliada para outros ecossistemas, como é o caso do Cerrado, e outras commodities além das sete elencadas na primeira versão da legislação. 

Pelo regulamento europeu, caberá aos importadores  implementar sistemas de due diligence que demonstrem que não houve desmatamento ou degradação florestal durante a produção e que levem em conta o respeito aos direitos trabalhistas e às comunidades locais e indígenas. 

Serão exigidos das empresas exportadoras “documentos verificáveis” que tragam informações como a geolocalização das fazendas onde o item foi produzido. Isso inclui a cadeia de fornecedores, um grande nó hoje quando se fala, por exemplo, da pecuária. 

Questão de Estado

Os grandes frigoríficos já têm uma certa visibilidade de seus fornecedores diretos, que fazem a engorda do boi. Mas ainda têm um grande desafio na cadeia indireta, da criação de bezerros e de bois magros, que está mais associada ao desmatamento. A alimentação do gado também precisa atender às exigências da lei europeia.

Hoje, empresas como JBS e Marfrig vêm implementando sistemas de rastreabilidade para chegar ao elo final da cadeia e têm o compromisso de ter desmatamento zero na Amazônia até 2025. 

“A questão é saber se esses controles serão aceitos pelos europeus”, aponta Paulo Barreto, pesquisador do Imazon e idealizador do Radar Verde, iniciativa que avalia os compromissos de rastreabilidade dos frigoríficos e varejistas na cadeia da carne. 

Fato é que ainda não se sabe ao certo o que será  aceito como garantia de procedência. 

Nos últimos meses, a indústria da carne vem cobrando por uma iniciativa mais centralizada, que abranja também os governos federais e estaduais, para fechar lacunas como garantir o acesso à Guia de Transporte Animal (GTA) — hoje usada apenas para questões sanitárias, mas não para o controle ambiental. 

“A indústria, de certa forma, está pressionada e puxando essa agenda de rastreabilidade nacional, mas ainda tem bastante resistência dos fazendeiros. Está faltando o papel do governo para fazer essa coordenação”, aponta Barreto. 

O PPCDAm, plano interministerial para controle de desmatamento da Amazônia, lançado na semana passada, traz a possibilidade de um sistema de rastreamento de produtos agropecuários do bioma. 

Aumentando o controle 

A iniciativa da União Europeia consolida na forma de lei uma demanda por ferramentas de rastreabilidade no agronegócio que já vinha ganhando corpo com exigências voluntárias por parte de grandes consumidores e investidores, especialmente os internacionais. 

O Banco Central também vem apertando o cerco aos bancos contra o crédito concedido a atividades em áreas de desmate e, mais recentemente, a Febraban, associação que reúne as maiores instituições financeiras do país, soltou uma autorregulação exigindo o controle de origem na cadeia da carne. 

Dentro desse cenário, a Produzindo Certo, uma plataforma que faz a avaliação e a adequação socioambiental de propriedades agrícolas, já sentiu um aumento importante na demanda por seus serviços. 

“Nós tínhamos 6500 fazendas conectadas ao sistema ao fim de 2022 e, neste ano, até o momento, já temos mais 2700 contratadas”, afirma Aline Locks, CEO da Produzindo Certo.

Entre as empresas contratantes dos serviços, estão gigantes de consumo como a Mars e a Unilever, além de grandes tradings de commodities, como a ADM. 

Rastreio da soja

Signatária de uma moratória que não permite a compra de grãos oriundos de áreas desmatadas na Amazônia após 2006, a indústria da soja é uma das que tem ferramentas para fazer algum controle da cadeia produtiva. 

“Já temos o monitoramento das fazendas que produzem na Amazônia”, afirma Bernardo Pires, gerente de sustentabilidade da Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove). 

O sistema não é livre de falhas — e um processo movido por ONGs nos Estados Unidos contra a Cargill, por exemplo, questiona os controles da trading no país. Mas com uma cadeia de fornecimento mais curta no campo, sem vários intermediários, um dos principais problemas nesse caso é garantir o controle da porteira para fora. 

Não há como assegurar, por exemplo, que a soja que virou maionese é exatamente aquela que saiu da fazenda certificada.

Hoje, o controle é feito por um sistema conhecido como ‘mass balance’. Ou seja, é possível verificar que a soja certificada e adquirida pela indústria de alimentos entrou em determinada trading em determinado volume – e é só esse volume que pode ser vendido como de procedência garantida. 

Mas o fato é que grãos são misturados nos silos e o rastreio pode se perder. Muitos especialistas entendem que esse mecanismo não será aceito de largada pela União Europeia, que pretende saber a procedência exata da carga que chegará aos países do bloco.

Uma alternativa, diz Pires, é que “da fazenda ao porto”, as empresas façam a segregação, armazenando os grãos que atendem aos critérios europeus em silos separados e transportados de forma distinta. Tudo isso, porém, teria um custo adicional. 

Quem paga a conta? 

“Não atender uma demanda de US$ 10 bilhões não é uma opção. A gente vai atender, mesmo que gere um custo adicional”, diz Pires. Mas a indústria não espera o pagamento de um prêmio verde pela UE. “Esse é o normal da Europa: pedir tudo e não pagar nada. A gente vê isso há 30 anos.”

Cerca de 15% do volume de soja embarcado pelo Brasil tem como destino a Europa, que consome principalmente o farelo, produto beneficiado e de maior valor agregado.

A expectativa é que o impacto maior seja sentido também na cadeia do café, que tem no mercado europeu o destino para 50% de suas vendas ao exterior. 

As contrapartidas da União Europeia para atendimento a suas exigências são uma das principais críticas à legislação. 

“A preocupação que nós temos é com o custo da comprovação: se vai ser certificação, se vai precisar botar uma terceira pessoa no meio, documentação, georreferenciamento”, afirma Sueme Mori, diretora de relações internacionais da Confederação Brasileira da Agricultura (CNA). “Isso vai gerar um aumento de custo para o produtor, e os maiores prejudicados serão o pequeno e o médio, e não o grande.”

Locks, da Produzindo Certo, também questiona a eficácia da medida: “Eles só estão criando uma barreira restritiva e não necessariamente trazem uma solução para o desmatamento, que deve vir a partir de um incentivo, principalmente financeiro. Como incentivar o produtor para que compense ele deixar essa área em pé e não a desmate?”

O Brasil já vem questionando as medidas unilaterais europeias na Organização Mundial do Comércio (OMC). A preocupação principal é que os fluxos comerciais sejam alterados pelo tratamento diferenciado para os países exportadores, com critérios definidos unicamente pela UE. Mas com o órgão de apelação da organização paralisado há anos, o caminho deve ser o da negociação direta com os europeus. 

Além da taxa de desmatamento, um outro requisito para avaliar o risco dos países para efeitos de fiscalização é a taxa de expansão agrícola, isto é, o quanto a agricultura vem crescendo na história mais recente. “Ou seja, países que têm uma história de desenvolvimento diferente da dos europeus nesse quesito serão extremamente prejudicados”, diz Mori, da CNA.

O regulamento europeu abre espaço para “cooperação” com os países em desenvolvimento, considerados de alto risco. 

No setor, uma das hipóteses em estudo seria uma eventual contribuição dos europeus para iniciativas antidesmatamento ou até mesmo para implantação de sistemas de controle no Brasil, que poderia acontecer via Fundo Clima ou outros tipos de acordos de cooperação. Mas as conversas ainda são preliminares.