A ausência de neve nos cumes da Cordilheira dos Andes nos últimos anos, resultado das mudanças climáticas, tem frustrado turistas que visitam a região. Longe dos olhos, um outro impacto traz riscos a um relevante segmentos das economias dos dois lados da cadeia montanhosa.
Numa região desértica por natureza, a neve acumulada nos picos durante o inverno sempre foi a reserva de água a encher os reservatórios a partir do degelo e abastecer as cidades e os vinhedos da região argentina de Mendoza.
Mas, com cada vez menos neve acumulada, os reservatórios têm baixado de nível e a disponibilidade hídrica, se tornado uma ameaça real à atividade.
“As geleiras andinas foram reduzidas em 22% nos últimos 30 anos”, diz Laura Catena, diretora da renomada vinícola argentina Catena Zapata e fundadora do Catena Institute of Wine, que realiza pesquisas para a viticultura do país.
“Quando falamos em aquecimento global, os viticultores europeus pensam no calor como questão principal. Por aqui, o maior problema é a água”, diz o enólogo argentino Sebastián Zuccardi, do grupo vinícola que leva seu sobrenome.
A Zuccardi cultiva mais de 1.200 hectares de vinhas próprias, entre o vale do Uco, aos pés da cordilheira, e Maipú, nas zonas mais planas próximas à cidade de Mendoza.
A questão da escassez de água é tão premente que Zuccardi, representante da terceira geração da família ligada ao vinho na Argentina, conta que o direito ao uso da água é uma premissa para definir para que direção pode expandir suas vinhas.
Mendoza tem um sistema de canais espalhado pelas vias, por onde escorre a água do degelo dos reservatórios para as propriedades. Algumas delas recebem do poder público o direito ao uso dessa água.
“Um hectare com direito ao uso de água vale de US$ 30 mil a US$ 50 mil. Sem água, não tem valor nenhum. É zero”, diz Zuccardi.
Isso explica, por exemplo, porque nem todos os hectares em Gualtallary, hoje a zona mais cobiçada pelo seu terroir privilegiado no Vale de Uco, são cultivados. Só tem vinhas aqueles que têm o direito ao uso da água.
Recentemente, a vinícola adquiriu 17 hectares em Gualtallary e outros 40 hectares em San Carlos. Comprou pela qualidade da terra, mostrando o claro deslocamento para o montanhoso Vale de Uco, ao sul de Mendoza, mas também pela busca de terrenos com água.
A preocupação dos produtores com a crise hídrica pode ser explicada na ponta do lápis por Laura Catena: o custo médio para plantar um hectare de vinha é de US$ 20 mil na Argentina, com a expectativa de as plantas produzirem por 30 anos. Mas, se pela falta d’água, a vinha for produtiva por apenas 15 anos, é prejuízo. “Neste caso, teríamos de adicionar mais US$ 6,5 mil por ano por hectare aos custos agrícolas”, calcula.
Já um vinhedo de alta qualidade custa US$ 80 mil por hectare. Se a água minguar, diz, seria um dinheiro perdido. E este risco, que nenhum produtor quer correr, é cada vez mais real.
Uma opção ao uso da água que vem dos canais sempre foi a escavação de poços artesianos. Mas hoje o governo proíbe a abertura de novos poços na região para não dilapidar ainda mais o já sofrido lençol freático.
A estimativa dos produtores é que o cultivo com água retirada do subsolo, pela necessidade de bombeamento, chega a ser 20% mais caro. Mas estariam dispostos a arcar com essa despesa maior se fosse permitido.
Nesta nova realidade, 15% dos vinhedos da Catena já estão em outras áreas do país, distantes de Mendoza: as Províncias de Salta, Catamarca e La Rioja e a região da Patagônia foram as escolhidas para a migração do plantio, modificando o mapa dos vinhedos do país nos últimos anos.
Isso não significa abandonar os vinhedos que dão origem a rótulos de prestígio da Catena. Mas a permanência demanda medidas de adaptação.
No vinhedo Adrianna, um dos primeiros a serem cultivados ainda no final da década de 1990 em Gualtallary, para onde foram migrando as vinhas de maior qualidade da região de Mendoza nos últimos anos, a vinícola implementa várias medidas para economizar água e manter a produção viável.
Mas enfrenta um outro desafio: quanto mais se sobe a montanha em busca de temperaturas mais amenas, maior o risco de geadas precoces na primavera, que podem congelar os brotos e colocar toda a safra a perder. E essas têm se tornado cada vez mais frequentes, revelando outra faceta perigosa da variação climática na região.
Do outro lado da cordilheira
No Chile, a crise de escassez de água não difere muito da Argentina.
O Vale do Maipo, não muito distante da capital Santiago, é responsável por colocar os grandes tintos chilenos em destaque mundial. Almaviva, Viñedo Chadwick e Don Melchor, todos de lá, são apenas três exemplos deste potencial, assim como o Casa Real, o cabernet sauvignon premium da vinícola Santa Rita.
Mas a região vem sofrendo com ondas de calor, daquelas capazes de elevar consideravelmente o teor alcoólico dos vinhos, além de enfrentar o alerta de falta de água.
O enólogo Gustavo Leal, da vinícola Santa Rita, diz que nas linhas mais premium, com uma margem de lucro maior, é possível investir no manejo do vinhedo, com técnicas que aumentam a superfície das folhas, e ter uma atenção precisa ao momento da colheita para evitar a sobrematuração da uva e, consequentemente, o aumento do álcool, quando a fruta se transforma em vinho.
Mas, para a produção de maior volume, o caminho foi investir em vinhedos em direção ao Sul, de clima mais frio. “Com a falta de água, estamos migrando do Maipo para o vale de Maule.”
Com 400 hectares, a nova área já conta com 190 deles cultivados com as variedades tintas cabernet sauvignon, carmenère, syrah e malbec.
O enólogo chileno Mario Geisse, também conhecido pelos espumantes brasileiros que produz, exemplifica a questão da água com o seu vinhedo em Marchigue, a cerca de 30 quilômetros do oceano Pacífico.
Na região, a irrigação agrícola acontece por poços profundos, que agora enfrentam problemas de vazão: o rendimento que antes era de 50 litros de água por segundo passou para algo entre 22 e 25 litros.
“Nos anos de chuva, como em 2023, as pessoas esquecem do problema, mas a água não foi capaz de voltar aos níveis normais nos poços neste ano”, diz Geisse. “É notório o reflexo da mudança climática. As temperaturas subiram e temos necessidade de mais água.”
Técnicas de adaptação
Os efeitos da mudança climática têm levado os produtores dos dois lados da cordilheira a planejar medidas de adaptação.
Uma delas é a adoção de porta-enxertos resistentes à seca. A técnica da enxertia foi a maneira de vencer a filoxera quando esse pequeno inseto quase acabou com os vinhedos franceses em meados do século 19. Deste então, com raras exceções no mundo – e o Chile é uma delas –, tornou-se impensável cultivar um vinhedo de outra forma.
Agora, para sobreviver à redução de água, produtores chilenos estão se rendendo à técnica, segundo o agrônomo René Vasquez, e buscando porta-enxertos de variedades que demandam menos hidratação.
A brasileira Iduna Weinert, que lidera a vinícola Weinert, na Argentina, conta que faz um mix entre vinhedos cultivados em espaldeira (técnica das plantas lado a lado) e pérgola (como um varal) para tentar manter os seus vinhos mais frescos. “A pérgola deixa a uva mais protegida pelas folhagens”, diz.
Além da escassez de água, a migração dos vinhedos mais para o Sul do país ou para as regiões mais altas acontece por uma busca de climas mais frescos.
“Estamos estudando vinhedos na Patagônia”, conta. “Mas a primeira coisa que estudamos antes de investir é como será o acesso à água. Depois pensamos em todas as demais questões.”
Patrício Parra, diretor de investigação e desenvolvimento da Wines of Chile, acredita que a batalha contra a água ainda não está perdida. “Há muita tecnologia em desenvolvimento para reduzir a utilização de água.”
Um exemplo, diz, é a irrigação por gotejamento, que, embora mais cara, é uma técnica mais eficiente que a tradicional inundação do terreno a partir da água do degelo que corre pelo sistema de canais. “A água está se tornando um bem tão escasso que vale a pena investir na sua economia”, afirma Parra.
A escolha das variedades é outra mudança que começa a ganhar visibilidade.
A opção tem sido por variedades de ciclos mais curtos. A pinot noir, por exemplo, demora entre 140 e 160 dias para ser colhida, a contar da sua brotação, enquanto a tradicional cabernet sauvignon tem um ciclo ao redor de 190 dias, o que aumenta a sua necessidade de água.
“Muitos produtores estão estudando plantar uvas com variedades autóctones ou plantas mais bem adaptadas à região e que, por isso, não retiram tanta água dos vinhedos”, diz Mariana Torta, gerente da Wines of Argentina para o mercado brasileiro.
O enólogo Julio Bastias, da chilena Matetic, diz que uma saída tem sido a implementação do cultivo biodinâmico – a filosofia criada por Rudolf Steiner no início do século 20, que prega a substituição dos insumos químicos pelos compostos naturais e um equilíbrio com as forças cósmicas.
“Uma das grandes razões para migrarmos para a biodinâmica é termos elementos naturais para reter a água no solo. É uma agricultura de resistência.”