Adeus, mundo corporativo tradicional. Olá, mundo ESG

Com a onda ESG que varre as empresas e as finanças, nunca houve tantas oportunidades de encontrar um emprego com propósito

Luciano Gurgel, diretor executivo da aceleradora social Artemisia
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Nos 17 anos em que trabalhou em grandes bancos, Luciano Amaral passou incontáveis horas em escritórios de advocacia discutindo contratos de emissão de ações ou de debêntures para grandes empresas.

Recentemente, ele voltou a uma das salas de reunião que frequentou em sua encarnação profissional anterior. “Fizemos uma drafting session com o mesmo pessoal, a mesma linguagem, os mesmos garçons servindo café e pão de queijo”, afirma ele. “Mas, desta vez, quem estava sentado comigo era um empreendedor social.”

O trabalho pode ser muito parecido, mas a satisfação é incomparável, diz Amaral (na foto acima). Não se trata de uma comparação maniqueísta. As companhias que ele assessorou no passado têm impacto na vida de centenas de milhares de pessoas. 

E os anos de experiência no mercado financeiro o prepararam para ajudar os “pequenos com ideias incríveis” que não tinham acesso a crédito.

Como o economista paulistano, hoje diretor-executivo da aceleradora de negócios sociais Artemisia, um número cada vez maior de profissionais procura esse “algo mais”. A palavra mais óbvia é propósito, mas o sentimento não pode ser reduzido a um único termo.

A Grande Debandada

Esse movimento se confunde com o fenômeno que vem sendo chamado de The Great Resignation – que podemos traduzir como “A Grande Debandada”. 

Desde julho do ano passado, mais de 4 milhões de americanos pedem as contas por mês. No Brasil, houve um pico de 530 mil demissões voluntárias em setembro do ano passado, quase o dobro dos 270 mil registrados em média, segundo o estúdio de análise de dados Lagom Data.

Os estudiosos ainda estão se debruçando sobre os motivos para tantas demissões voluntárias e o papel que a pandemia desempenhou nessa onda global de “repensar a vida”.

Uma coisa é certa: nunca antes houve tantas oportunidades para casar valores e convicções pessoais com a vida profissional.

“Até alguns anos atrás, quem aspirava ter uma carreira com propósito só vislumbrava a opção de ir para o terceiro setor, mas hoje em dia não é mais assim”, diz Milena Brentan, sócia e head de recursos humanos da Vox Capital, pioneira em fundos de venture capital de impacto. 

Ela própria é uma representante dessa migração. Antes de chegar à Vox, em 2020, Brentan passou mais de cinco anos na Airbnb e tinha carregado também os crachás do Grupo Pão de Açúcar e da Ultragaz.

A passagem pela empresa americana, com a cultura mais informal e horizontal típica do Vale do Silício, foi parte da mudança almejada pela executiva. Mas depois de algum tempo ela começou a ficar inquieta de novo.

A área de recursos humanos pode exercer influência positiva na vida das pessoas, mas Brentan (na foto abaixo) procurava algo difícil de definir precisamente.

O “momento a-ha!” veio quando ela conheceu o setor de investimento de impacto. Ela menciona a Wecancer, uma plataforma de telemedicina para pacientes com câncer que recebeu investimento da Vox.

“Ajudar no crescimento de um negócio que melhora vidas é o que energiza nossa equipe. Você vê nos olhos das pessoas.”

É O ESG

Um levantamento da Bloomberg aponta que até 2025 o valor total de ativos em fundos sustentáveis pode bater US$ 53 trilhões, dominando um terço do montante mundial de investimentos. Profissionais capazes de analisar balanços e também critérios ESG estão em altíssima demanda, no Brasil e no mundo.

Isso também é verdade para o mundo das empresas. A agenda ambiental, social e de governança está no topo das prioridades das corporações. Isso representa uma nova e enorme onda de vagas de trabalho que podem oferecer o tal “propósito”.

Para ficar em apenas dois exemplos brasileiros, no início de 2020, a Sitawi, que tem a missão de mobilizar capital para impacto socioambiental positivo, tinha 35 funcionários e hoje conta com mais de 170 colaboradores e uma certificação Great Place to Work. A Vox Capital tinha dez funcionários em 2020; hoje a casa abriga quase 50.

E não são apenas trabalhadores jovens que estão chegando. Os recrutadores estão recebendo currículos de peso, recheados de nomes de startups de sucesso e corporações e instituições financeiras tradicionais.

Felipe Brescancini conhece o assunto em duas dimensões diferentes. Depois de oito anos no marketing da Procter & Gamble e uma incursão pelo mundo das ONGs, hoje ele é responsável pelo desenvolvimento de negócios do Sistema B no Brasil e na América Latina.

O anseio por uma vida profissional mais significativa também despertou seu interesse acadêmico. Guinadas de carreira foram o tema de sua dissertação de mestrado, na London School of Economics.

Em suas entrevistas com jovens profissionais brasileiros, ele encontrou alguns pontos convergentes. A sensibilidade para questões sociais, por exemplo, vem da adolescência. Mas, seja por influência da família ou pela pressão social, muitos deles acabam indo parar no mundo corporativo tradicional.

Amaral, da Artemisia, diz que seus pais eram da “classe trabalhadora politizada”. Ele se lembra vivamente das filas dos sopões e dos albergues nos limites do Cambuci, bairro paulistano onde cresceu.

Cursou economia acreditando que aquele seria o caminho para desenhar soluções para o fim da pobreza. Acabou fazendo carreira em finanças, assessorando grandes empresas – experiência que ele descreve como “maravilhosa”.

Isso não quer dizer que a chama se apague, afirma Brescancini. “Ouvi muitos relatos de gente que percebeu um descompasso entre o que se faz nas corporações e o que a sociedade realmente precisa.”

Entre o “cair da ficha” e uma eventual mudança, porém, há um processo de amadurecimento. “À medida que esses trabalhadores sobem de cargo e têm mais renda e mais poder, também ganham mais estabilidade e autoestima”, afirma Brescancini. Segundo ele, esse costuma ser um passo necessário para a virada profissional.

Sem ilusões

Trabalhar de casa certamente colocou em relevo pontos negativos do trabalho, como cargas horárias exaustivas, reuniões inúteis, presenças decorativas – e, em alguns casos, ambientes tóxicos.

Não estamos falando de herdeiros de grandes fortunas. Trabalhar é uma necessidade. Como o emprego perfeito não existe, por que não procurar um lugar que esteja mais em sintonia com suas prioridades pessoais e com seus valores? 

A advogada Julia de Almeida, 30, passou os primeiros anos da vida profissional ajudando a elaborar estratégias tributárias para grandes companhias. “Não tinha como escapar.” Um mestrado internacional focado em ESG foi o estopim para a mudança de rumo.

Hoje, Almeida trabalha na Nint (spin-off da Sitawi que foca exclusivamente em finanças sustentáveis), ajudando companhias de todos os portes a avançar em direção a suas metas ambientais, sociais e de governança.

“Nos dois anos desde que comecei, vejo as gestoras usando cada vez mais as ferramentas de análise e tornando as discussões sobre compromisso ESG mais produtivas”, afirma ela. É a realização de um anseio que a acompanha desde os tempos da faculdade: usar o conhecimento das leis e das finanças para provocar mudança social.

Transicionando

Brentan, da Vox, diz que não houve sobressaltos na transição de carreira. “É uma dinâmica de negócios incontornável, veio para ficar.”

Em outras palavras: é um trabalho como outro qualquer. A novidade é que cada vez mais empresas e instituições financeiras farão parte desse “capitalismo consciente”, “capitalismo de stakeholder” ou qualquer que seja o termo escolhido.

Uma possível diferença está na remuneração (embora não haja dados que permitam fazer uma comparação precisa).

Antes de assumir a Artemisia, Luciano Amaral trabalhou durante seis anos na Yunus Negócios Sociais do Brasil, uma firma de investimentos fundada pelo Nobel da Paz Muhammad Yunus.

“Quando saí do banco para ir para a Yunus, ouvi de colegas que iria morrer de fome, que eu não iria conseguir prover uma boa vida para a minha família”, afirma Amaral. “De fato, eu iria ganhar 1/12 avos do que ganhava na época, mas não mudaria para algo que eu não soubesse que iria me dar um bom retorno em alguns anos. Estava certo.”

E o contracheque não discrimina satisfação nem o equilíbrio mais justo entre casa e trabalho. “Quando você tem seus filhos em casa, não é mais suportável fazer presença decorativa no escritório”, diz Brescancini.