O ano de 2020 nos impôs desafios sem precedentes. O vírus não apenas ameaçou nossas vias respiratórias, mas nos fez mergulhar em questões profundas e ontológicas. Atravessar o ano sem ser achatado por ele tornou-se (des)aventura constante e, portanto, nada melhor que um bom livro para digredir e/ou pugnar.
O primeiro é o clássico O Existencialismo é um Humanismo, de Jean-Paul Sartre. São apenas 70 páginas, mas que dizem tudo. A conferência que deu origem a esse livro prenunciou O Ser e o Nada e, sem dúvida, serviu como faísca para incendiar o movimento estudantil francês que subverteu o mundo em maio de 68. A crise abrirá caminhos para novas trajetórias e escolhê-las certamente faz parte da reflexão sobre o que dá sentido à nossa existência.
Outra leitura fundamental é Capital e Ideologia, de Thomas Piketty. Com escrita fluida e palatável, o aclamado historiador e economista francês interpreta um conjunto de fatos e dados históricos que embasam conjecturas ousadas e potentes sobre capital, propriedade, riqueza e desigualdade. Segundo o autor, desigualdade é uma escolha ideológica. A leitura é obrigatória para todos que buscam não apenas nadar na superfície, mas também se aprofundar nos axiomas e questões mais imperativas dos nossos tempos.
Também recomendo Tudo em Seu Lugar, do Oliver Sacks, um dos cientistas mais interessantes e lúcidos a se aventurar no meio literário, que recentemente partiu desta para uma melhor. O livro é uma coletânea de textos narrados em primeira pessoa por Sacks, publicado este ano pela Companhia das Letras, que nos conduz por histórias reais e fascinantes vivenciadas pelo autor e seus pacientes. Comecem pelo relato sobre os sonhos neurológicos!
Para compreender a distopia, nada como ler Aldous Huxley. Escolhi A Ilha, último romance dele, que lembra o clássico Admirável Mundo Novo, mas sob uma perspectiva diferente. Em vez do futurismo orwelliano, a provocação se passa em Pala, ilha na qual os habitantes buscam felicidade renegando consumismo e tecnologia, entorpecidos de “Moksha”, droga alucinógena ministrada pelo guru da ilha. Vale cada página e o paralelo com as deformidades da civilização atual impressiona.
Não poderia deixar de indicar Reimagining Capitalism in a World on Fire, da Rebecca Henderson, expoente do ESG, acrônimo da moda. O livro é baseado em casos reais e mostra como combinar sustentabilidade e ética com capitalismo e livre mercado é um vetor excepcional para acelerar a transição rumo a um modelo de desenvolvimento econômico mais inclusivo e aderente aos limites planetários. O capitalismo assim como tal não é o caminho, a negação dele, também não. É preciso reinventá-lo. O livro é um convite a esse desafio, que, sem dúvida, é a oportunidade da década.
Aos que se interessam por futuro e tecnologia, leiam Facebook – The Inside Story, do Steven Levy. Se a internet nasceu como território livre, hoje tornou-se o quintal de cinco senhores feudais: Facebook, Apple, Amazon, Microsoft e Google, as “FAAMGs”, segundo Wall Street. O Facebook, feudo que governa as redes sociais, é destrinchado por Levy na melhor e mais completa narrativa sobre como Mark Zuckerberg deixou de ser apenas um universitário incauto e “viciado em Civilization” para criar e controlar um império digital que que dita as regras, incluindo eleições, no mundo inteiro.
Ainda não li, mas pretendo começar em breve The Secret of Our Success, de Joseph Henrich. O professor de biologia da Universidade de Harvard defende que não dominamos o planeta por inteligência inata, mas por nossa incrível capacidade de, a partir dela, forjar grupos sociais que interagem e cooperam em escala. Foram a linguagem e a cultura que fizeram o homo sapiens se descolar das demais espécies. Nada melhor para o paradoxo atual: se, por um lado, a pandemia ameaçou nossa existência, por outro, produzimos uma vacina imunizante em meses, provando que não existe força da natureza ou vírus capaz de frear seres humanos movidos pela ciência com uma causa em comum.
Para finalizar, já que Bob Dylan levou o Nobel de Literatura, me sinto no direito de sugerir uma música e um documentário que me trouxeram alento e otimismo para uma boa aterrissagem em 2021. A música é Sob Pressão, composta e interpretada por Gilberto Gil e Chico Buarque como resposta à pandemia, e o documentário é AmarElo – É tudo pra ontem, do rapper Emicida, uma ode ao movimento negro brasileiro.
*Fábio Kestenbaum é advogado, pós-graduado em Desenvolvimento Econômico pela Universidade de Oxford, sócio-fundador da Positive Ventures, fundo que investe em negócios orientados à resolução de desafios sociais e climáticos da atualidade.
(Crédito da foto: Freddie Marriage/Unsplash)