Seria preciso uma vida inteira para explicar às crianças o que aconteceu no Rio Grande do Sul. São tantas questões, de tantas naturezas, tantas perdas, tantas variáveis, tanta História, assim com H maiúsculo, e tantas histórias, que daria um livro com muitos volumes.
É urgente entender a história do Brasil, sobretudo essa que aprendemos mais recentemente, frutos de pesquisas contemporâneas, com especial atenção às narrativas dos povos originários e de descendentes de escravizados, que demoraram a ter acesso à universidade e têm muito à acrescentar ao ponto de vista até então exclusivo do colonizador e de seus descendentes. Uma história mais aprofundada do Rio Grande do Sul e de seu processo de ocupação não seria demais. Sem deixar de fora como se chegou ao cenário político, econômico e social de hoje.
Para falar sobre mudanças climáticas, geografia e meteorologia, seria necessário começar com um panorama global e ir afunilando para contar porque choveu tanto e como lidar com a situação sob a perspectiva da prevenção, da segurança, do cuidado e do respeito, algo que tem faltado na nossa trajetória como país.
A partir daí, o S, do ESG, assumiria o lugar definitivo de protagonista. Durante as chuvas, que duraram semanas, e a partir do momento em que a água começa a baixar, é apenas de gente que se trata (ou deveria se tratar).
As perdas e o sofrimento são de uma extensão inimaginável. Trabalho, lembranças, patrimônio, sensação de segurança (material e afetiva) e vidas foram levados pela água e pela lama. Uma catástrofe sem precedentes que deixará cicatrizes mais perenes do que as marcas marrons que carimbam nas paredes brancas das casas a altura da cheia.
Há apenas três meses, recomendei Sebastião, da editora Aletria, que relaciona a história do Brasil com a tragédia que matou e desabrigou centenas de pessoas no litoral norte de São Paulo. Um desastre ambiental que comemorou um ano em janeiro de 2024 e é narrado por um menino, cuja família perdeu tudo mas escapou com vida.
Em janeiro de 2022, destaquei o premiadíssimo Sagatrissuinorana (foto), da ÔZé Editora, sobre o rompimento das barragens de Mariana e Brumadinho, onde mais uma vez o descaso deu passagem à lama. Ela levou o que quis.
Duas obras que não poderiam ser mais atuais. São necessárias e valiosas para todos. Neste momento, porém, sugiro que sejam apresentadas apenas às crianças que NÃO estão vivendo a tragédia de perto. As narrativas de texto e imagem podem tocar em dores ainda muito recentes. Podem machucar ainda mais quem já perdeu tanto e ainda trata suas feridas.
Para crianças do Rio Grande do Sul, o tempo é de acolhimento, de elaboração de perdas e, sempre que possível, de plantar esperança.
Foi irresistível não pensar em Sonhambulantes, de Regina Bertola e Anna Cunha, publicado também pela ÔZé Editora. O livro é o quarto volume da Coleção Presente de Vô, mas todos podem ser lidos de maneira independente.
Anna Cunha, ilustradora mineira e vencedora de cinco Jabutis, o mais tradicional prêmio literário brasileiro, cria uma atmosfera suave com sua pintura em paleta de tons terrosos, recheada de rosas, verdes e cinzas, para retratar três irmãs que parecem feitas de algodão.
Constância, Perpétua e Eterna vivem Naquele Lugar. Um lugar que pode ser onde o leitor desejar: no mundo real ou no mundo imaginário. As três têm o dom de sonhar acordadas e de viver nos próprios sonhos. E cada sonho provoca um deslumbramento sem igual, como se fosse o primeiro. Até que um chega avariado. Mas claro que para tudo se encontra um jeito. Até para sonho que se quebra. Começa aí a aventura de consertar esse sonho, ainda não revelado, que deixa duas crianças doidas de curiosidade. Destituídas desse poder de sonhar acordadas, elas começam a inventar o que sonhariam acordadas, se pudessem:
“Que todos os quarenta e cinquenta bilhões, vinte e um trilhões de dúzias de crianças do universo dormissem com histórias e cantigas de ninar.”
“Que tivessem avô de verdade ou emprestado.”
“Eu queria ser sabichona, poeta e aventureira.”
E por aí vai. Não se dão conta de que já estão sonhando. Com o quê sonhariam as crianças gaúchas se tivessem o dom de sonhar acordadas?
Essa aventura de consertar sonho e recuperar sonho que foge é narrada por Regina Bertola, diretora do grupo de teatro Ponto de Partida, de forma dinâmica, cheia de humor e de referências culturais do interior do Brasil. Impossível não sorrir, não torcer e não ficar com o coração cheio de esperança. Mesmo quando pesadelos ameaçam entrar na história ou quando bate o cansaço, vem uma das irmãs sonhadoras com um empurrãozinho: “pois envelhecer é isso, minha irmã, perder a coragem de correr atrás dos sonhos que cultivamos por sete luas e longos invernos.”
Sonhambulantes tem o potencial de manter acesa aquela chama que nos faz sonhar – apesar dos percalços, adversidades e tragédias da vida. Pode ser um alento, um suspiro no meio do caos para as crianças vítimas das enchentes, mas também uma injeção de energia para todos os que queremos um Brasil menos enlameado.
Indo além
As enchentes que assolaram o Rio Grande do Sul impactaram igualmente o mercado editorial local. Livrarias independentes são pequenos negócios, muitas vezes familiares, que dependem de suas vendas para existir como um estabelecimento que leva arte, cultura, reflexão e divertimento para uma comunidade e também para sustentar as famílias, os estudos e os sonhos de quem ali trabalha. Ao comprar livros, priorize sempre uma livraria independente. Nesse momento, priorize uma livraria do Rio Grande do Sul. Em geral, as compras pode ser feitas pelos sites ou por WhatsApp e as entregas são feitas no Brasil todo.
Abaixo, sugestões de livrarias de rua que podem ter o livro dos seus sonhos:
Livraria Baleia
Rua dos Andradas, 351, Porto Alegre, Rio Grande do Sul
https://www.livrariabaleia.com.br
https://www.instagram.com/livrariabaleia
Livraria Bamboletras
Av. Venâncio Aires, 113, Porto Alegre, Rio Grande do Sul
https://www.instagram.com/bamboletras
Cirkula
Osvaldo Aranha, 444, Porto Alegre, Rio Grande do Sul
https://livrariacirkula.com.br
https://www.instagram.com/cirkula444
Clareira
Rua Henrique Dias, 111, Porto Alegre, Rio Grande do Sul
https://www.instagram.com/livrariaclareira
Livraria Londres
Rua Osvaldo Aranha, 1182, Porto Alegre, Rio Grande do Sul
https://www.instagram.com/livrarialondres
Livraria Taverna
Rua dos Andradas, 736, Porto Alegre, Rio Grande do Sul
https://www.instagram.com/livrariataverna
Via Sapiens
Rua da República, 58, Porto Alegre, Rio Grande do Sul