Entre as várias duras realidades expostas pela tragédia no Rio Grande do Sul, o nó do setor de seguros diante da mudança do clima está entre os particularmente complicados de desatar.
O tamanho do prejuízo deve demorar para ser conhecido, mas a expectativa é de perdas sem precedentes na história do país. Na seca que atingiu o Estado dois anos atrás, foram pagas indenizações de quase R$ 9 bilhões somente para o setor agrícola.
Com quase a totalidade dos municípios gaúchos atingidos pelas enchentes, o número deve ter outra ordem de grandeza quando forem computados os seguros residenciais, de automóveis e de empresas, sem contar o impacto nas contas de saúde, que se estenderão pelo futuro.
Historicamente o setor no Brasil sempre foi acanhado. Menos de 20% das residências estão seguradas. No agronegócio, um dos motores da economia brasileira, só 10% da área plantada tem algum tipo de proteção.
É consenso entre os especialistas que os seguros são parte importante das finanças do clima e das políticas de adaptação a um mundo sujeito a eventos extremos, pois a conta não pode recair apenas sobre os orçamentos públicos
Mas, ao mesmo tempo em que ganha importância, o setor se vê diante do que alguns chamam de “espiral da morte”: a incerteza aumenta o valor dos prêmios, desastres resultam em prejuízos debilitantes e algumas partes do planeta se tornam efetivamente “inseguráveis”.
“As seguradoras estão com medo”, disse ao Reset um graduado executivo do setor.
Basta olhar para o que acontece nos Estados Unidos. Allstate e State Farm, duas das maiores companhias do país, pararam de vender seguros residenciais na Califórnia por causa dos crescentes riscos de incêndios florestais.
Cerca de 12% dos entrevistados em uma pesquisa recente afirmaram que pretendem se mudar da Flórida porque o custo das apólices ficou inviável – o Estado está na rota dos furacões e tempestades tropicais do Atlântico.
Ninguém arrisca dizer que algo parecido vá acontecer no Rio Grande do Sul. Mas, quando a principal ferramenta de cálculo de risco de seguros começa a mostrar suas falhas num mundo em transformação, não parece prudente descartar imediatamente essa possibilidade.
“É improvável que dados históricos sejam bons indicadores do impacto dos riscos climáticos nas perdas futuras das companhias [de seguros]”, diz um relatório recente do banco central da Inglaterra.
Setor público
O desafio não se restringe ao setor privado. A ideia de proteger a infraestrutura pública, algo praticamente inexistente no país, também deve entrar na agenda de discussões.
Alguns modelos inovadores para atrair o capital privado, seja com a ajuda de bancos de desenvolvimento ou com novos instrumentos financeiros, estão sendo testados – inclusive em Porto Alegre.
A capital gaúcha faz parte do piloto de uma plataforma de seguros para cidades. A iniciativa é liderada pelo Iclei, uma ONG que reúne cerca de 2 mil governos subnacionais do mundo todo.
Junto com outras nove cidades, a capital gaúcha vai selecionar estruturas críticas e levantar os valores para uma eventual proteção.
Uma vez feita a seleção pelas dez cidades, os riscos serão consolidados em um pool compartilhado pelas seguradoras e resseguradoras, o que se traduz em um custo menor para as cidades.
O banco alemão de desenvolvimento KfW vai arcar com 60% dos prêmios, até um valor total de € 10 milhões. O restante é de responsabilidade dos municípios, que não são obrigados a contratar a apólice.
Em caso de desastres, o modelo prevê pagamentos rápidos, para minimizar os impactos negativos dos desastres causados pela mudança do clima.
A ideia não é segurar apenas uma ou outra instalação, mas um conjunto delas, diz Rovana Reale Bortolini, diretora de projetos e políticas de sustentabilidade da secretaria de Meio Ambiente e Urbanismo da capital gaúcha. “Podem entrar ruas, prédios públicos que servem de apoio para a população.”
As casas de bombas, que devolvem para o Guaíba a água da chuva vinda do esgoto e são um dos mecanismos de defesa contra as cheias do rio, poderiam entrar no seguro.
“Nossa encomenda é quase começar o mercado de seguros para infraestruturas resilientes na região”, diz Rodrigo Perpétuo, secretário-executivo do Iclei América do Sul. “A ideia é que seja um processo pedagógico, para gerar experiência e capacidade nas prefeituras.”
Outro objetivo do programa, batizado de Urban Infrastructure Insurance Facility, é levantar uma discussão que não pode mais ser adiada: o planejamento urbano diante das ameaças climáticas.
“Se o seguro não é viável em determinado local, isso é um sinal para a cidade. Pode ser que no longo prazo tenhamos que repensar algumas áreas de ocupação, e não estou me limitando ao Rio Grande do Sul.”
Além da capital gaúcha, Curitiba já estava confirmada entre as dez cidades, e Belo Horizonte e Recife estão em fase avançada de entendimentos, como Bogotá e Buenos Aires, segundo Perpétuo.
Catastrophe bonds
No mercado de capitais, há interesse crescente por um instrumento criado nos anos 1990 e que até bem pouco tempo ocupava um nicho: os catatastrophe bonds.
Em abril, o Banco Mundial emitiu três dessas dívidas de catástrofe, que vão financiar US$ 420 milhões de dólares para o governo mexicano em caso de furacões ou terremotos.
No Brasil, uma modalidade semelhante, as Letras de Risco de Seguro, foram regulamentadas no final de fevereiro, mas ainda não há companhias aprovadas para lançar esses títulos.
Os CAT bonds, como também são conhecidos, tipicamente transferem os riscos de seguradoras ou resseguradoras para investidores, embora os emissores também possam ser Estados ou empresas.
Eis um exemplo hipotético:
. Uma seguradora emite um título, oferecendo remuneração superior a outros de renda fixa;
. O CAT bond tem um gatilho: o pagamento de indenizações superiores a um valor pré-determinado, ou então um terremoto acima de uma certa intensidade;
. Os investidores são remunerados com o pagamento de juros e, no vencimento, recebem de volta o principal;
. Caso o gatilho seja atingido, os recursos levantados com a operação são repassados para o emissor, e o investidor perde.
Para os compradores, esses títulos oferecem uma opção de diversificação de boa rentabilidade – e alto risco – e desconectada do vaivém do mercado ou da economia como um todo.
Como os prazos costumam ser curtos, a probabilidade de ocorrência dos eventos-gatilho, o que significaria a perda do capital investido, é menor.
Para os emissores, o objetivo principal é oferecer uma fonte de recursos garantida no momento em que eles são mais necessários.
Estima-se que pelo menos 70% do PIB mexicano esteja sujeito a dois ou mais tipos de desastres naturais. O país foi o primeiro a lançar um CAT bond, em 2006, e desde então já realizou 20 emissões.
A operação recém-anunciada tem vencimento em 2028 e contou com a adesão de 27 investidores institucionais de todo o mundo, segundo comunicado do Banco Mundial.
No Brasil
Por aqui, ainda não houve operações com Letras de Risco de Seguro. porque a Superintendência de Seguros Privados (Susep) ainda não autorizou nenhuma seguradora a emiti-las.
O interesse por esse tipo de dívida ainda é uma incógnita, diz Leonardo Gava, gerente-sênior de Transição Agrícola da Climate Bonds Initiative, uma entidade que certifica bonds sustentáveis.
Por um lado, o mercado de securitização no Brasil em geral desperta apetite, afirma Gava. “Mas, com o que vemos agora no Rio Grande do Sul e outros lugares, o risco parece ser alto. Não temos ideia da disposição dos investidores domésticos para isso.”
Com reportagem de Italo Bertão