Depois da aprovação pela Câmara dos Deputados na derradeira sessão de 2023, quatro dias antes do Natal, o projeto de lei que cria o mercado regulado de carbono no Brasil voltou oficialmente ao Senado na primeira semana de fevereiro.
Esta talvez seja a única certeza a respeito do assunto. A versão que será apreciada pelos senadores mantém as principais definições de um sistema de cap and trade que impõe limites a grandes emissores de gases de efeito estufa.
Mas o texto vindo da Câmara também entra nas compensações voluntárias – os créditos de carbono adquiridos por companhias brasileiras ou estrangeiras para neutralizar suas emissões mesmo sem obrigações regulatórias. Isso criou uma “grande salada”, nas palavras de uma pessoa que acompanha o tema há anos.
A confusão ficou ainda maior porque os deputados também fizeram uma manobra regimental. A maior parte do conteúdo da proposta reflete o PL 412/22, originado no Senado e aprovado pela casa em outubro.
Mas o projeto de lei foi apensado a um outro que já circulava na Câmara, o PL 2148/15. Isso significa que, caso os senadores façam alterações, a proposta terá de passar novamente pelo crivo dos deputados.
Havia a esperança de que o mercado regulado fosse aprovado a tempo da COP28, realizada em dezembro do ano passado. A ideia do governo federal era apresentar a lei como mais um sinal do comprometimento do país com a descarbonização. A conferência do clima veio e se foi, e o que temos é a versão ‘monstro de Frankenstein’ para apreciação do Senado.
Os mais otimistas falam em uma aprovação “este ano”, mas não há garantias.
Até quando esperar?
O atraso pode ser custoso. A sobretaxa instituída pela União Europeia para os importados que embutem carbono, conhecida pela sigla CBAM, já está em fase de testes, e o imposto começa a ser cobrado em 2026.
Estar sujeito a um sistema regulado em seu país é uma maneira de evitar esse “imposto do carbono”, considerado também pelo Reino Unido e pela Austrália. As empresas brasileiras terão de esperar.
“Uma vez aprovado, estamos falando de um mercado regulado brasileiro funcionando mesmo daqui a cinco anos”, diz uma pessoa que segue de perto as idas e vindas de Brasília. “Porque teremos um prazo de até dois anos para a regulamentação, depois a definição dos caps [limites de emissões] setoriais, depois uma fase de pilotos.”
Já se contava com um prazo estendido de implementação, pois trata-se de uma estrutura nova e complexa, e os fundamentos do Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões – nome proposto para o mercado regulado brasileiro – não sofreram alterações importantes na Câmara.
Misturando as coisas
O maior obstáculo daqui para a frente, na opinião unânime dos especialistas ouvidos pelo Reset, será lidar com a inclusão no texto dos créditos de carbono para o mercado voluntário.
Eles já apareciam na proposta original, mas somente no que dizia respeito à interseção com o mercado regulado.
Um exemplo hipotético: uma indústria química que ultrapasse seu teto de emissões poderá fechar sua conta de carbono usando – dentro de um limite a ser estabelecido – um mix de créditos de carbono e as chamadas “permissões para poluir” negociadas dentro do mercado regulado que sejam próprias ou compradas de pares que tenham emitido abaixo do seu teto, ou seja, que tenham um saldo positivo de CO2.
O texto atual vai muito além desse ponto de contato. O sexto capítulo inteiro é dedicado à oferta voluntária. Embora haja consenso dentro e fora do país sobre a necessidade de regras para dar mais integridade a esse mercado, misturar as coisas acabou criando um texto confuso e sem foco.
“Houve um lado de ‘como ganhar dinheiro’ com carbono, que deturpou a ideia central do projeto”, afirma uma pessoa que segue as minúcias das negociações. Além dos interesses das empresas que já atuam no desenvolvimento de projetos de carbono, existe a expectativa de que o agronegócio também seja um potencial vendedor de créditos.
Pontos de atenção
Um dos itens introduzidos diz respeito aos programas jurisdicionais de geração de créditos de carbono, ou REDD+ jurisdicional. Trata-se de uma modalidade nova, que atrai interesse especial dos Estados da Amazônia por ser uma potencial fonte de novas receitas.
Nesse tipo de programa, um Estado é remunerado pelo desmatamento que deixou de acontecer graças à implementação de políticas públicas. Essa abordagem em teoria elimina o problema de “superfaturamento” de créditos que abala a credibilidade dos projetos privados.
Os dois tipos de iniciativa podem coexistir. O Acre pode vender créditos jurisdicionais, “descontando” os créditos das iniciativas particulares para que não haja o risco de a mesma tonelada de carbono ser vendida duas vezes.
O objetivo é oferecer integridade, algo com que todos concordam. Mas um desenvolvedor privado afirma que o problema será a operacionalização dessa contabilidade. “Sei como funcionam as coisas. Já cansei de passar horas esperando em gabinetes e só conseguir aprovações depois de encontrar algum conhecido.”
Outro ponto contencioso é a determinação de que 50% dos recursos decorrentes da venda de créditos em iniciativas de restauração de biomas sejam destinados a populações indígenas, quilombolas ou tradicionais daquele território. Essa porcentagem poderia inviabilizar muitos empreendimentos, já que o reflorestamento tem custos altíssimos.
O fator Brasília
Entidades setoriais e esforços individuais vão retomar estes e outros pontos agora que o PL voltou ao Senado. A expectativa é que a senadora Leila Barros (PDT-DF) seja novamente a relatora, o que é visto como um ponto positivo pois ela entende o assunto em detalhes e foi capaz de costurar o texto aprovado em outubro passado.
Mas a possibilidade de que esse enxerto sobre o mercado voluntário – que ocupa dois terços do projeto em sua versão atual – seja desmembrado e tratado à parte é tida como pequena.
O que nos traz ao “risco político”.
A atenção cada vez maior sobre os assuntos ligados à mudança climática, junto com a realização da Conferência do Clima da ONU em Belém em 2025, mostra que um tema essencialmente técnico como o mercado de carbono está sujeito a consequências imprevistas.
A agenda climática/ambiental tornou-se um dos fronts mais importantes na queda de braço entre as casas do Congresso e também na disputa entre Legislativo e Executivo.
A renumeração do PL significa que cabe ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), a palavra final antes da assinatura do presidente Luiz Inácio da Silva. Existe a possibilidade de que seu par no Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), não aceite a jogada regimental dos deputados.
Tampouco está decidido o caminho que o projeto vai percorrer no Senado a partir de agora e o que vai acontecer com o texto depois da devolução para a Câmara caso haja alterações significativas.
As fontes ouvidas pelo Reset pediram anonimato para falar sobre o andamento da proposta, pois atuam também junto aos parlamentares. Ao mesmo tempo em que expressaram frustração, todas pareciam resignadas com a dança política.
A esperança é que a aprovação aconteça até a COP29, que acontece em novembro. Mas, depois de chegar tantas vezes tão perto, por enquanto não se trata de nada além disso: uma esperança.