Os riscos do 'protecionismo do bem' e as três novas regras europeias de ESG

Imposto do carbono, auditoria da cadeia de suprimentos e regulação contra desmatamento impactam as empresas com exposição ao bloco

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Para quem achava que sustentabilidade e ESG eram conceitos teóricos, opcionais ou assuntos para um futuro longínquo, parece que o futuro já chegou.

O ano de 2024 começa desafiador para mercados exportadores com maior exposição aos fatores de risco de sustentabilidade – ambientais (“E”) ou sociais (“S”). Para entender a escala desses desafios, sugiro atenção a três novas regulações:

  1. Imposto do Carbono – Carbon Border Adjustment Mechanism (“CBAM”);
  2. Regras de due diligence para E&S em toda a cadeia de suprimentos – Corporate Sustainability Due Diligence Directive (“CS3D”) e
  3. Regulação contra desmatamento e degradação de florestas ou “Deforestation-free Regulation” (“EUDR”)

Algumas mudanças relevantes, comuns a quase todas:

  • Extra jurisdicional: Pela primeira vez, as regras ESG passam a ter escopo extra jurisdicional, o que pode resultar em barreiras comerciais relevantes para as empresas exportadoras para a Europa que não reduzirem (e comprovarem) suas exposições aos riscos ESG.
  • Cadeia: As regras europeias se estendem à cadeia de suprimento, o que gerará obrigações de cumprimento para empresas de todos os tamanhos, sejam elas exportadoras diretas ou não.
  • Impacto nos balanços: Nenhuma dessas regras tem a ver unicamente com obrigações de “reporte” voluntários. Elas exigem ações. Ou têm impacto concreto em preço (CBAM), ou em ações de remediação de impacto (CS3D) ou simplesmente serão barreiras comerciais (CS3D, EUDR) que impedirão a exportação. Ou seja, elas impactam diretamente os balanços via preço, custo e volumes de produção. Mais real, impossível.
  • Auditoria: Em linha com  balanços financeiros, a tendência é que a informação reportada passe a ter que ser verificada por terceiros independentes (CBAM, EUDR).
  • Dupla materialidade obrigatória: Ao contrário de outras regulações de reporte (TCFD), que exigem que as empresas avaliem apenas o impacto que os fatores ESG têm sobre seus balanços, essas novas regulações passam a exigir que a empresa explicite o seu impacto sobre os fatores ESG. Essa não é uma mudança marginal. 
  • Muito além do meio-ambiente (E) : Não menos importante, duas dessas três regras (CS3D e EUDR) atrelam compliance não só à mitigação de riscos ambientais, mas também sociais, o que é inédito e será um desafio extra para o Brasil e países mais carentes.
  • Custo de não-cumprimento e litigância: As regras são passíveis de punições administrativas e  financeiras, incluindo multas e indenizações. Os riscos e custos de litigância devem aumentar significativamente, como vem acontecendo em situações similares no resto do mundo. Não menos importante, a CS3D dá às comunidades impactadas o direito de levar os pleitos para as cortes europeias. 
  1. O imposto do Carbono – Carbon Border Adjustment Mechanism (“CBAM”)

Data: a partir de 31 de janeiro de 2024

Setores impactados: cimento, aço, ferro, fertilizantes, alumínio, eletricidade e hidrogênio

Em 31 de janeiro, a Europa inaugura o mecanismo de ajuste de preço do carbono para importações. Para quem não incluiu o custo de carbono na conta, haverá um sobrepreço a pagar a partir de janeiro de 2026 (as obrigações de reporte já valem a partir de janeiro de 2024). A regra começa com alguns setores carbono-intensivos listados acima e logo se expandirá para outros. Se sua empresa é de alguns desses setores ou participa da cadeia você terá: 

  • obrigações de cálculo periódico da intensidade de carbono em sua empresa e 
  • impacto em preço e volume dependendo da competitividade do seu produto.
  1. Regulação de Due Diligence de Sustentabilidade – Corporate Sustainability Due Diligence Directive (“CS3D”) 

Data: a definir – publicação final estimada em alguns meses

Setores: todos os setores; empresas com faturamento líquido gerado na Europa superior a € 150M ou com faturamento superior a € 40M quando metade dele vier de setores de “alto risco” – cadeia têxtil, agricultura, floresta, pesca, alimentos, bebidas, extração e manufatura de minerais metálicos e não metálicos (gás, petróleo, aço, material de construção, químicos e outros produtos intermediários). 

Há cerca de um mês, a Europa finalizou o acordo sobre a legislação que, a meu ver, é a que tem o maior alcance entre todas as regulações que menciono aqui: a chamada CS3D. Empresas dos setores acima que têm exposição na Europa, sejam elas exportadoras diretas ou integrantes da cadeia de valor, serão impactadas. Abaixo, as principais novidades da CS3D:

  • Uma regra detalhada de due diligence sobre os fatores E&S (clima, biodiversidade, direitos humanos, trabalho etc.)
  • Se identificados impactos negativos em um dos dois fatores, exige que a empresa defina planos concretos e se responsabilize até a solução final. A regulação se sobrepõe às regras nacionais. Ou seja, a regulação europeia entrará onde Estados e justiças nacionais não fizerem suas partes.
  • As empresas devem criar canais de reclamação para a comunidade. A CS3D dá 5 anos para que as comunidades impactadas (E ou S) reclamem seus direitos nas Cortes Europeias e consigam “full compensation” pelos impactos causados.
  • Não menos importante, a regulação exige que as empresas adotem um plano compatível com a transição climática (limitar o aquecimento global a 1,5°C) e, se o risco climático for relevante, que adotem objetivos de redução das emissões. Ou seja, o Acordo de Paris passa a ser obrigatório, o que é também inédito.
  • Finalmente, além de outras penalidades, as multas chegarão a 5% do faturamento global da empresa. Seguindo a abordagem “name and shame”, essas penalidades serão públicas.
  1. Deforestation-free Regulation (“EUDR”) 

Data: 30 de dezembro de 2024

Setores: carne, cacau, papel, madeira, soja, óleo de palma, café, borracha e derivados (couro, chocolate, pneus, móveis, papel e celulose etc.)

A partir de 30 de dezembro de 2024, será proibido, para os setores acima, exportar para mercados europeus, a não ser que se prove todas as condições abaixo:

  • Ter a cadeia “deforestation-free”. O que significa não ter havido desmatamento  (nem degradação) em nenhuma etapa da produção após dezembro de 2020 (isso mesmo, 2020).
  • Certificar que o produto tenha sido produzido de acordo com a relevante legislação do país de origem (no caso do Brasil, com o Código Florestal, por exemplo).
  • Certificar que o produto passou por due diligence formal, que inclui:
  1. Detalhada coleta de informações, incluindo rastreamento, trilha de auditoria, geo-localização (http://forest-observatory.ec.europa.eu).
  2. Avaliação do risco inerente, levando em conta o risco de degradação e devastação do país de origem (Brasil, obviamente, é alto), se há ou não presença de povos indígenas na área, se há nível elevado de corrupção etc. O Brasil, inevitavelmente, não vai sair bem de partida. Uma boa avaliação de risco, mostrando nuances por áreas do país, pode fazer muita diferença no resultado final (aqui, eu diria, é onde mais vale investir recursos de avaliações independentes).  
  3. Em caso do item ‘2’ resultar em “risco não negligenciável” a empresa deve explicitar os mecanismos de mitigação de riscos, incluindo políticas de compliance e auditoria independente.
  • Penalidades incluem multas de até 4% do faturamento líquido anual da empresa gerado na Europa.

O que fazer? 

Apesar de estar um pouco longe do dia a dia do Brasil e talvez muito já esteja sendo feito, na minha visão, há tarefas para todos. 

Dado o impacto significativo e cumulativo  das  regras, as empresas precisam de ajuda institucional. Cabe ao governo brasileiro e às entidades setoriais a tarefa de trabalhar em conjunto com as autoridades europeias (e OMC) para assegurar que essas bem-vindas mudanças rumo a um capitalismo mais limpo sejam implementadas de forma transparente, justa e balanceada. 

Com a complexidade das regras e os desafios de monitoramento, não é desprezível o risco de que, mesmo empresas responsáveis, sejam negativamente (e talvez, em alguns casos, injustamente) impactadas.

Já para as empresas da cadeia exportadora, os conselhos de administração têm papel estratégico (e urgente) de liderar a avaliação dos impactos dessas mudanças, definindo investimentos e desinvestimentos . Os riscos do “protecionismo do bem” devem ir para a ordem do dia e para os “top 3” de suas matrizes de risco. Ou, para quem sair na frente, de seus mapas de oportunidades.

* Julieda Puig tem extensa experiência em regulamentação internacional, com ênfase em Environmental, Social, and Governance (ESG) e Compliance. Certificada pelo IBGC, com mais de 8 anos de experiência em conselhos, incluindo chairwoman do conselho fiscal da BBDTVM. Baseada em Londres, é conselheira consultiva da Lacan Ativos Florestais e executiva global ESG/Compliance de um banco internacional. Foi assessora especial do Ministro da Fazenda e Secretária Adjunta de Política Econômica no governo FHC. Colabora com a Climate Policy Initiatives (CPI), apoiando finanças sustentáveis em países como Brasil, Marrocos e Quênia. É mestre em Economia pela FGV-SP, com especialização na Université Catholique de Louvain-la-Neuve. Possui certificação ESG-Cambridge, CFA ESG Investing e GRI.