Os preços do azeite no mercado internacional mais que dobraram no último ano por causa da seca que atingiu a Espanha, maior produtor do mundo.
Um choque dessa magnitude ainda não atingiu o mercado de café, mas há quem diga que é questão de tempo: a mudança climática já é realidade para a cafeicultura.
Alterações nos padrões climáticos nas próximas décadas podem inviabilizar até metade das áreas hoje ocupadas por cafezais, segundo um estudo do Banco Interamericano de Desenvolvimento.
Isso é um problema para a Nestlé, dona das marcas Nescafé e Nespresso, e ainda maior para os agricultores que fornecem grãos para a multinacional suíça.
No início de outubro, a companhia anunciou uma iniciativa piloto que vai oferecer seguro climático para 800 pequenos produtores da Indonésia, e um projeto semelhante na Colômbia já protege cerca de 30 mil cafeicultores.
O projeto faz parte do programa Nescafé 2030, cujo objetivo é garantir a sustentabilidade de longo prazo do café e apoiar os agricultores.
Dependendo dos resultados, a experiência pode ser repetida em outros países, incluindo o Brasil. O país já é o maior fornecedor do café embalado nas cápsulas Nespresso e vem ganhando importância também na variedade robusta, tipicamente usado para a bebida instantânea.
O elo mais fraco
De todos os elos da cadeia, os produtores de pequeno porte correm os maiores riscos relacionados a tempestades ou secas, e hoje as opções de proteção são extremamente limitadas.
“O segurado típico vive numa cidade, tem renda média ou alta, é empregado, tem um carro, uma casa. Você precisa se encaixar em uma dessas categorias para entrar no mundo dos seguros”, diz Jaime de Piniés, CEO da Blue Marble, empresa que desenhou o produto oferecido pela Nestlé.
Com sede em Genebra (Suíça), a insurtech foi fundada por um grupo de grandes seguradoras e resseguradoras, incluindo o Zurich Insurance Group, para lidar com esse “gap de proteção”.
O problema não se restringe ao campo, mas De Piniés afirma que a startup acabou se concentrando nos agricultores por perceber que a necessidade é particularmente crítica para populações rurais.
Igualmente, a Blue Marble não tem foco exclusivo no clima, mas nas conversas essa é inevitavelmente uma das principais preocupações dos produtores, afirma o CEO.
Repensando o seguro
Grandes produtores contam com apólices abrangentes que cobrem, ainda que indiretamente, eventos climáticos extremos – compensando eventuais perdas de produção.
No caso dos pequenos, é difícil fechar essa mesma conta, afirma De Piniés. “Esses seguros amplos custam caro. Esse é um dos problemas que quebramos a cabeça para resolver.”
A solução envolve usar muita tecnologia – e desenhar um novo produto praticamente do zero.
Imagens de satélite e bancos de dados são usados para precificar o risco. “Isso nos ajuda a entender muito melhor o impacto de uma seca ou de uma geada numa localidade específica”, diz De Piniés.
A tecnologia digital também ajuda a reduzir os eventuais custos da vistoria, que pode ser realizada remotamente. “Enviar uma pessoa para fazer esse trabalho em propriedades pequenas é economicamente inviável.”
Outra inovação do programa implementado na Indonésia é a tentativa de oferecer apólices “cirúrgicas”.
Em vez de cobrir o ciclo produtivo completo, a Blue Marble estuda coberturas para um período específico em que chuvas fortes possam afetar a floração dos cafezais, por exemplo.
Vendendo a ideia
Ter um produto desenhado sob medida para um cliente pouco habituado a lidar com seguros é parte do trabalho. Outra é convencê-lo da importância da proteção.
A Blue Marble opera desde 2018 um programa com cafeicultores colombianos que fornecem para a Nespresso.
No ano passado, chuvas torrenciais causadas pelo fenômeno La Niña resultaram no pagamento de US$ 3 milhões para 6 mil produtores segurados. Este ano e no próximo, pode haver novas perdas causadas pelo El Niño.
“Um dos nossos sucessos é construir essa relação de confiança. O produtor entra, entende como funciona, às vezes usa o seguro”, afirma De Piniés.
O subsídio também é fundamental, diz o CEO. No programa da Indonésia, a Nestlé arca com parte do pagamento. Com o tempo, a expectativa é que os fazendeiros assumam parcelas maiores do valor.
Outra possibilidade é um subsídio oficial, como o oferecido pelo governo da Colômbia. Em cinco anos, o programa foi expandido para todas as regiões produtoras do país e hoje cobre mais de 30 mil cafeicultores.
A conta do clima
Com eventos extremos cada vez mais frequentes ou intensos – ou ambos –, como vai ficar essa conta no futuro?
De Piniés diz que o desafio é massivo. Uma das expectativas é que os modelos evoluam e permitam cálculos de risco mais precisos, o que se traduzirá em prêmios economicamente viáveis.
Hoje, as seguradoras ainda estão dispostas a aceitar esse risco, mas o assunto talvez comece a se misturar com o tema maior da adaptação climática, afirma o executivo.
Os fundos internacionais demandados pelos países em desenvolvimento para adaptação a um clima que está mudando poderiam ser utilizados em políticas de governo para ampliar a parcela de agricultores segurados.
“Temos essa grande discussão acontecendo no nível das políticas globais, e ao mesmo tempo o pequeno agricultor precisando de ajuda para ontem”, diz o executivo. “Precisamos unir os pontos.”
A startup lançou este ano na Índia um microsseguro para garantir renda para mulheres incapazes de trabalhar ou que perdem renda por causa das altas temperaturas.
No período de cobertura, entre maio e junho, são típicos os dias em que a temperatura passa de 45°C. Além do calor, muitas vendedoras de comida não têm acesso a refrigeração e são obrigadas a jogar fora sua parte de sua produção.
Ao todo, a Blue Marble tem cerca US$ 50 milhões em apólices ativas. A empresa também está presente em Guatemala, Honduras, Peru, Zâmbia, Zimbábue, Moçambique e Paquistão, entre outros.
O Brasil está no radar, diz De Piniés. “As oportunidades apareceram em outros lugares, mas certamente estamos interessados.”
*Atualizado em 27.out – A AIG não é mais uma das acionistas da Blue Marble.