Compensação para produtor manter floresta sai do papel após 13 anos

Conciliar lavoura e floresta pode ser um desafio no campo. Agora, um novo mecanismo surge como alternativa para produtores que mantém a floresta em pé e para quem está em dívida com a lei ambiental.

São as Cotas de Reserva Ambiental, um título que representa uma área de floresta existente ou em recuperação acima do mínimo exigido por lei. O objetivo é valorizar essas matas nativas e ajudar propriedades rurais a cumprir o que determina o Código Florestal.

Os títulos têm sido chamados pela sigla CRA, mas não têm relação nenhuma com os Certificados de Recebíveis do Agronegócio, um instrumento usado para financiar produtores rurais.

A primeira emissão será feita em uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) de 160 hectares, em Nova Friburgo (RJ), em novembro. A escolha se deu devido a segurança ambiental e jurídica que as RPPNs apresentam. 

“Estamos implementando a lei. Queremos começar por um local com condições claras para verificação e monitoramento do processo”, diz Marcus Vinícius Alves, diretor de Regularização Ambiental Rural, do Serviço Florestal Brasileiro (SFB), órgão responsável pela regulamentação e emissão das cotas. 

O mecanismo é previsto pelo Código Florestal há 13 anos, mas só agora ele chega a campo. A estreia é vista como um avanço na implementação da lei, segundo Jarlene Gomes, pesquisadora Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), organização científica que atua no monitoramento e apoio à aplicação do regulamento florestal.

“Ele [o Código Florestal] é um instrumento de adaptação e de mitigação. Sem vegetação não há água para produzir, sem equilíbrio perdemos recursos naturais que sustentam a agricultura. Conservar o que ainda está em pé é essencial, e as cotas têm um papel central nisso”, disse. 

As primeiras emissões já podem ter efeitos práticos. Produtores que enxergarem oportunidade de lucro podem investir em conservação, como cercar reservas, explica Leonardo Martin Sobral, gerente de legalidade florestal do Imaflora, organização da sociedade civil que acompanha o Código Florestal.

“Os produtores começam a enxergar que há formas de gerar renda mantendo a floresta. E a floresta só vai permanecer em pé quando tiver valor”, diz. 

Em uma segunda etapa, o SFB vai levar as cotas para o mercado financeiro. Bancos e outras instituições financeiras vão poder se credenciar como intermediários na negociação dos títulos. Segundo Alves, do SFB, já há conversas com algumas instituições. Não há previsão de data para essa fase. 

Além de produtores rurais, as CRAs também podem interessar empresas com metas de ESG e sustentabilidade e investidores que enxergam nelas ativos ambientais com valor de mercado.

O preço será determinado pelo mercado, na relação de oferta e demanda, e não controlado pelo SFB ou pelo governo. Fatores como bioma em que o título foi emitido e custo de oportunidade (o rendimento se aquela área fosse usada para produção) devem influenciar a precificação, segundo Alves. 

Como as CRAs funcionam

O proprietário rural é obrigado por lei a manter parte da vegetação nativa de sua propriedade, a chamada Reserva Legal. Essa porcentagem varia conforme o bioma.

Na Amazônia Legal, por exemplo, é exigida a preservação de 80% da propriedade. Com as CRAs, quem preservou além do mínimo poderá ser remunerado pelo excedente. Quem tem dívida ambiental pode se regularizar comprando cotas, o que deve ter um custo menor do que a restauração e uma eventual redução da área produtiva.

Essa via de compensação é permitida em casos de desmatamentos ilegais ocorridos até 22 de julho de 2008. Desmatamentos posteriores exigem recomposição integral. As transações envolvendo as cotas de reserva ambiental devem ocorrer dentro do mesmo bioma e, de preferência, no mesmo Estado.

“Cada bioma tem seus desafios, seja de conservação ou de pressão por desmatamento. Manter a compensação restrita ao mesmo bioma fortalece a conservação dentro dele. Se fosse diferente, haveria risco de desincentivar a conservação justamente onde existe o déficit”, afirma Sobral, do Imaflora. 

Para emitir o título, é necessário ter o Cadastro Ambiental Rural (CAR) analisado e um laudo do órgão ambiental estadual comprovando a existência da vegetação preservada.

A partir da primeira emissão, os produtores interessados podem recorrer ao SFB para emitir suas CRAs. A ideia é criar um “estoque” de cotas integrado ao Sistema de Cadastro Ambiental Rural, detalha Alves.

Os bancos credenciados terão acesso a esse estoque para negociar com produtores rurais, empresas ou investidores.

Entraves

Para funcionar, as CRAs dependem de controle e fiscalização eficientes. “O CAR é a base para o produtor rural. Até mesmo por uma lógica de mercado: se eu sou um investidor ou comprador, quero ter certeza de que o produto em que invisto está minimamente regularizado”, diz Gomes, do Ipam.

O desafio está na análise dos cadastros ambientais. O CAR é um documento autodeclaratório e precisa passar por uma validação dos órgãos estaduais competentes. Dos 8 milhões ativos, só 5% tiveram a análise concluída. 

Isso gera distorções, como sobreposição de áreas e inclusão de terras públicas, unidades de conservação e terras indígenas, explica Rodrigo Lima, sócio-diretor da Agroicone, consultoria para desenvolvimento sustentável da agropecuária.

O resultado é uma base inflada: mais de 7 milhões de cadastros somavam 650 milhões de hectares – quase todo o território brasileiro. Após correções, o total caiu para 567 milhões de hectares, mais próximo da realidade, segundo Lima.

Além das dificuldades técnicas, disputas judiciais também atrasaram a emissão das cotas. Um ponto central foi o critério para emissão, levado ao Supremo Tribunal Federal (STF). 

Após seis anos de debate, em 2024, o STF reafirmou o critério por bioma como regra, “garantindo a segurança jurídica necessária para avançar”, diz Alves, do SFB. A decisão abriu caminho para retomar o processo, e o Rio de Janeiro se tornou o primeiro estado a se voluntariar para emitir uma CRA.

“A CRA já está pronta para acontecer. Basta validar os cadastros. Se até 2030 conseguirmos conservar alguns milhões de hectares de passivo de reserva legal, será um avanço real”, afirma Gomes.