No sul do Amazonas, o cultivo de café em sistemas agroflorestais vem mostrando que é possível regenerar a floresta e gerar renda para agricultores familiares. O Café Apuí Agroflorestal reúne 115 produtores locais, já recuperou 265 hectares de áreas degradadas e evitou o desmatamento de 10 mil hectares de floresta.
Esse avanço, no entanto, não se deve apenas à técnica agrícola. Ele está relacionado, também, à forma como as relações entre estes produtores e empresas passaram a ser construídas.
Em diversas localidades do país, as assinaturas de contratos ainda são vistas como um mal necessário, sinônimo de burocracia e desconfiança, com diversas barreiras causadas pelo juridiquês. Para que uma mudança de percepção aconteça, medidas concretas vêm sendo adotadas.
Cláusulas passam a ser redigidas em linguagem simples, após processos de escuta e validação envolvendo quem está na ponta, podendo ser acompanhada de materiais visuais e áudios, com protocolos jurídicos criados a partir de pesquisas em tribunais brasileiros. Assim, os acordos podem ser compreendidos, respeitados e cumpridos com segurança jurídica.
Escuta e linguagem simples
Um exemplo prático desta metodologia é o Projeto Contratos Justos na Amazônia, que se apoia em três princípios: os textos dos acordos só são válidos se for possível entendê-los, se eles reduzirem assimetrias e melhorarem a vida das pessoas.
Para que essa tríade ganhasse forma, o projeto estruturou um processo que começa com escutas comunitárias e entrevistas de campo, seguidos de um desenho participativo do contrato em linguagem simples. Isso passa por rodadas de negociação coletiva em que cada dúvida é debatida e ajustada e culmina na assinatura validada por registros escritos, orais ou audiovisuais, sem perder o rigor jurídico necessário.
É fundamental que advogados atuem nos territórios, promovam oficinas sobre linguagem simples, advocacia popular e design aplicado a contratos. Porque assim os documentos firmados deixam de ser um instrumento distante e tornam-se um pacto construído em diálogo e adaptado à realidade local.
O caso do Café Apuí Agroflorestal mostra que a sociobioeconomia não se sustenta apenas com inovação técnica ou acesso a financiamentos. Ela precisa de estruturas jurídicas que funcionem para todos os lados da cadeia produtiva.
Sem clareza nos contratos, as desigualdades se perpetuam e as soluções se fragilizam. Quando há equilíbrio, confiança e compreensão, abre-se caminho para que projetos ganhem escala e transformem territórios.
Assimetria ainda é regra
Esse é um desafio estrutural. O Código Civil brasileiro parte da ideia de que todas as partes estão em posição de igualdade ao firmar um contrato, a não ser que uma lei diga o contrário (como, por exemplo, o Código de Defesa do Consumidor e a Consolidação das Leis Trabalhistas) ou elementos do caso concreto afastem essa presunção.
Essa suposição não resiste à realidade das negociações entre grandes empresas e comunidades tradicionais. Nesses contextos, a assimetria é regra, não exceção. E sem mecanismos inovadores, o contrato deixa de ser instrumento de justiça para se tornar barreira.
Por isso essa experiência amazônica tem relevância que vai além da região. Ela aponta um caminho para a construção de relações sustentáveis em qualquer território onde haja desequilíbrios de poder e informação.
Colocar em prática princípios de simplicidade, transparência e equidade é condição para que o desenvolvimento sustentável deixe de ser discurso e se torne prática.
Às vésperas da COP30 em Belém, essa lição ganha dimensão global. Mobilizar bilhões em financiamento climático será crucial, mas de nada adiantará se os acordos continuarem sendo celebrados em linguagem inacessível e sem enfrentar as desigualdades de origem.
O Brasil tem a oportunidade, nesta conferência, de mostrar que proteger a natureza passa também por boas práticas jurídicas. A floresta em pé depende de economias vivas e estas, de contratos construídos com confiança e clareza.
Que Belém marque o início de uma nova gramática da transição. Uma gramática em que justiça contratual seja reconhecida como parte inseparável da justiça climática.
* Aline Gonçalves Videira de Souza é coordenadora do projeto Contratos Justos na Amazônia e doutora em Administração Pública e Governo (FGV); Erika Bechara é doutora e mestre em Direito Ambiental (PUC-SP) e professora de Direito Ambiental. Ambas são sócias do escritório Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados.