
Nunca antes o Brasil chegou tão próximo de uma proposta concreta para taxar os super-ricos. A taxação já era prevista na Constituição de 1988, mas em 40 anos nunca engrenou como agora. O governo tem um projeto andando no Congresso, que está conectado a uma articulação internacional por um imposto mínimo para pessoas de alta renda – evitando, assim, a evasão de divisas.
A campanha pela taxação conta com o apoio inédito de alguns bilionários brasileiros – lá fora, pares como Abigail Disney, Bill Gates e Warren Buffett já defenderam maior tributação sobre altas rendas.
O cineasta vencedor do Oscar Walter Salles afirmou publicamente que ele e os demais ricos do país deveriam pagar mais impostos para corrigir as distorções do sistema tributário brasileiro, que cobra proporcionalmente mais de quem tem menos – ele é um dos herdeiros do banco Itaú Unibanco e tem fortuna avaliada em R$ 25 bilhões pela Forbes.
Os dados confirmam a desproporção: os super-ricos têm no Brasil uma alíquota efetiva média de 2% a 4% sobre a renda total. Na outra ponta, os 10% mais pobres pagam, em média, 32% da renda em impostos, com a arrecadação recaindo mais sobre trabalhadores com carteira assinada, que têm imposto recolhido na fonte. Os dados são de um estudo do Instituto de Justiça Fiscal (IJF) e da Oxfam Brasil.
“Temos a chance de construir um país mais justo e igualitário, corrigindo as distorções de um sistema que, como a gente sabe, cobra mais de quem tem menos. Então quero deixar aqui todo o meu apoio à tributação progressiva, à taxação das grandes fortunas e à democracia com justiça tributária”, disse Salles ao receber um prêmio no início de julho.
O apoio, no caso, é à proposta apresentada ao Congresso pelo governo de Lula em março. Ela prevê a isenção de imposto de renda para quem ganha até R$ 5 mil mensais e descontos para rendas até R$ 7 mil. Para compensar a perda de arrecadação, propõe tributação mínima para indivíduos de alta renda, a partir de R$ 50 mil mensais (R$ 600 mil por ano), com alíquota efetiva mínima escalonada, chegando a 10% para indivíduos com rendimento superior a R$ 1,2 milhão anuais.
Em quatro meses o projeto caminhou e foi aprovado na Comissão Especial da Câmara dos Deputados que analisou o texto. Ele está, agora, pronto para ser pautado no plenário da casa – o que está previsto para acontecer em agosto, após o recesso do Congresso.
Gangorra tributária
Os mais ricos estruturam seus rendimentos via lucros e dividendos, fundos exclusivos ou ativos offshore, que hoje são isentos ou que têm tributação considerada baixa, o que reduz sua carga tributária. Com a nova regra, o contribuinte teria que somar todos esses rendimentos e pagar a diferença, caso a alíquota efetiva seja inferior à mínima exigida.
Dados da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda mostram que, entre os contribuintes que ganham mais de R$ 1 milhão por ano, mais de 60% pagam menos do que 10% de alíquota efetiva de imposto de renda. Entre os de renda superior a R$ 4,8 milhões anuais, a alíquota é de 6,3% – abaixo dos 7,5% pagos por contribuintes com renda entre R$ 6 mil e R$ 10 mil mensais.
“Eu recebo dividendos e rendimentos de investimento, que são isentos. Na hora H, não pago imposto de renda efetivo”, disse o acionista controlador da Porto Seguro, Jayme Garfinkel, em entrevista recente ao Reset. Ele também apoia a proposta em tramitação no Congresso de imposto mínimo para altas rendas.
Esse novo imposto sobre os super-ricos afetaria 140 mil pessoas, se aprovado. Ou seja, 0,2% da população brasileira.
“O Brasil taxa muito mal. Há muita taxação sobre consumo, liberando taxação de altas rendas, propriedades, heranças, lucros e dividendos. Ou seja, é um sistema que protege essas pessoas”, diz Viviana Santiago, diretora executiva da Oxfam Brasil. Segundo ela, essa é uma decisão institucional, que se não for corrigida, o Estado não terá capacidade para combater desigualdades sociais e aumentar investimentos.
Isso acontece porque na América Latina, em geral, o sistema tributário é regressivo. Nesse modelo, os tributos são mais voltados sobre o consumo, incidindo com a mesma alíquota sobre todos, independentemente da renda – o que faz com que pesem mais no bolso dos mais pobres. Já impostos progressivos, como o de renda, aumentam de forma proporcional à capacidade de pagamento: quem ganha mais, paga mais — tanto em valor absoluto quanto proporcionalmente à sua renda.
O Brasil começou a atacar esses desequilíbrios com a nova tributação de fundos exclusivos e offshores, em vigor desde janeiro de 2024, lembra Freire, subsecretária da Fazenda. Ela explica que a alta taxação de consumo no Brasil tem a ver com a baixa formalização do mercado de trabalho. No primeiro trimestre de 2025, a taxa de informalidade do país foi de 37,9% entre os trabalhadores. Sem salário formal para taxar, o sistema tributário fez isso via consumo.
O projeto de lei enviado ao Congresso é focado em renda e não em patrimônio (o que incidiria sobre fortunas), porque o governo avaliou que as distorções do imposto de renda no Brasil tinham maior urgência de correção.
“O Brasil tem um problema de composição da arrecadação. Os países da OCDE tributam mais a renda, pela dinâmica de países desenvolvidos com alta formalidade. Aqui, acabamos explorando mais a tributação no consumo, uma base mais ampla e mais certeira do que a renda”, diz Freire. “Mas é importante mitigar isso ao longo do tempo e isso depende muito da formalização do mercado de trabalho.”
Do Brasil para o mundo
Taxar fortunas está previsto na Constituição de 1988, mas a prática nunca foi regulamentada. Propostas foram apresentadas ao longo dos anos, mas enfrentaram resistência (política e econômica) e não avançaram. Em 2020, com a pandemia de Covid-19 agravando a crise socioeconômica, se intensificou a campanha pela taxação dos super-ricos como forma de arrecadação para políticas sociais e redução de desigualdades.
Em 2024, durante a presidência brasileira no G20, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, propôs um imposto mínimo global de 2% sobre grandes fortunas, iniciativa que ganhou apoio internacional e foi incorporada na declaração do fórum de cooperação que reúne as 20 maiores economias do mundo. Uma tributação global mínima evitaria a evasão fiscal e “buracos” nas arrecadações domésticas.
“Não temos uma cooperação internacional para a tributação de pessoas, o debate sempre foi mais no campo da taxação de empresas e corporações. Isso gera buracos, com pessoas evadindo os sistemas tributários”, explica a subsecretária da Fazenda.
Algumas experiências comprovam isso. A Suécia tinha um imposto sobre fortunas, mas o aboliu em 2007. A justificativa foi que o imposto era ineficiente e gerava perdas de arrecadação. Já a França aboliu o Imposto sobre a Fortuna (ISF) em 2018, substituindo-o por um imposto sobre bens imóveis (IFI).
Já a Noruega aumentou o imposto sobre a riqueza em 2023, o que levou à saída de bilionários do país, com perda de US$ 54 bilhões em patrimônio e US$ 594 milhões anuais em arrecadação. Para conter a fuga de capitais, o país tem endurecido o “imposto de saída” (exit tax).
A proposta de imposto mínimo do G20 é do economista francês Gabriel Zucman, que roda o mundo defendendo um padrão global de taxação para fechar as brechas usadas pelos ultra ricos para driblar os impostos.
Há diferença conceitual entre taxação de super-ricos e de grandes fortunas, termos que aparecem com frequência no debate sobre justiça tributária. No entendimento do Ministério da Fazenda, a “taxação de super-ricos” está ligada à reforma do imposto de renda e à tributação de rendimentos elevados. Já a “taxação de grandes fortunas” refere-se especificamente à regulamentação do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), que incidiria sobre o patrimônio acumulado.
Na visão da Fazenda, porém, os conceitos estão conectados, uma vez que rendas elevadas hoje vão se tornar patrimônios altos no futuro.
Quem são, o que comem
Não há informações oficiais e públicas de quantos bilionários o Brasil tem hoje.
“O patrimônio dos super-ricos sempre é estimado pela imprensa. Temos menos informações do que o necessário”, diz Santiago, da Oxfam. “Precisamos saber o montante arrecadado, a origem e quanto disso vai realmente para o financiamento de políticas públicas, como via de acesso aos nossos direitos”, aponta.
A revista americana Forbes tem um ranking sobre os bilionários no mundo. Na edição de 2025 listou 55 bilionários brasileiros (em dólar), que somaram um patrimônio de US$ 215 bilhões, aproximadamente R$ 1,2 trilhão – equivalente a 72% do PIB de Portugal.
Débora Freire, da Fazenda, afirma que a transparência tem avançado globalmente, mas o sigilo fiscal do Brasil não permitiria dados públicos detalhados sobre o patrimônio de pessoas físicas.
“Transparência é essencial, mas complexa. Antes de 2014 não tínhamos dados abertos sobre imposto de renda por extrato social. Mesmo não sendo por CPF, e sim por faixa de renda, já nos garantiu clareza da regressividade do nosso sistema tributário. Foi que o permitiu construir uma proposta viável e pragmática que pode se tornar histórica para o país”, diz.