Responsável pela condução da política fiscal do Ministério da Fazenda, a subsecretária Débora Freire vê a proposta de taxação mínima de alta renda como um passo decisivo para corrigir distorções no sistema tributário brasileiro, em especial a regressividade que penaliza proporcionalmente mais os contribuintes de menor renda.
A proposta apresentada pelo governo ao Congresso é de uma tributação mínima de até 10% para a alta renda, os chamados “super-ricos”. O imposto seria progressivo para quem ganha anualmente entre R$ 600 mil e R$ 1,2 milhão, com alíquota entre 2,5% e 10%.
“É uma proposta viável, tecnicamente boa e justa”, afirmou Freire em entrevista ao Reset.
Segundo a Fazenda, cerca de 140 mil brasileiros — 0,2% da população — seriam afetados. Para quem já paga acima desse mínimo continua tudo igual. Quem paga menos, deverá complementar a diferença.
Freire explicou que o foco da proposta está na tributação da renda, e não do patrimônio, por uma questão de urgência na correção dessas distorções e também de viabilidade técnica.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista:
A proposta de taxar quem ganha entre R$ 600 mil e R$ 1,2 milhão por ano está no Congresso e tem sido chamada de taxação dos super-ricos. No ano passado, o Brasil encampou a ideia dentro do G-20, encomendando proposta ao economista francês Gabriel Zucman. Em que medida ambas as propostas conversam?
Foi histórico ter no G20 uma declaração dos países-membros sobre progressividade tributária com cooperação internacional. É um tema que já vinha sendo desenvolvido no G20, mas muito restrito às grandes corporações multinacionais. Incluímos a tributação de pessoas físicas porque esse é um problema geral dos países.
A ausência de cooperação internacional gera buracos na tributação doméstica, com pessoas evadindo os sistemas fiscais nacionais. O estudo do Gabriel Zucman traz uma proposta bem viável de imposto mínimo internacional.
A discussão no Brasil é complementar, pois aqui temos um imposto regressivo no topo, com pessoas ricas pagando menos proporcionalmente às suas rendas. Há um consenso de que isso precisa ser resolvido e essa proposta é viável, tecnicamente boa e justa. Nela, você não distingue tipos de rendimento. Pega o bolo de rendimentos e a pessoa deve contribuir com um imposto mínimo. E aí tem a discussão política em torno disso, pois no Brasil é difícil fazer reformas.
Por que a taxação dos mais ricos se dará sobre a renda e não sobre o patrimônio e fortuna? Existe um entendimento de que é algo mais factível?
Basicamente porque temos, hoje, um problema na tributação da renda. O imposto de renda de pessoa física é um instrumento super importante para a tributação, que deve ser progressiva. Mas hoje, não é. É progressiva até um ponto e depois começa a ficar regressivo. Ou seja, contra qualquer princípio teórico da tributação, como equidade vertical e horizontal.
Temos muita disponibilidade de dados sobre a tributação de renda, com um fluxo de dados que a Receita tem pleno controle. Se for para começar de algum lugar, tem que ser pela tributação de renda, pois há muitos problemas, com diagnósticos consolidados. Isso não impede que outras propostas sejam discutidas no futuro, como a questão do patrimônio, por exemplo.
Essa medida por si só já encerra a questão ou necessita de medidas complementares para que o regime tributário se torne justo?
Não encerra a questão. O imposto mínimo [sobre rendas altas] é um primeiro passo. Depois disso, ainda restam distorções a serem corrigidas. No Brasil, é muito difícil mexer no andar de cima. A proposta é corajosa nesse sentido. Falamos desses problemas há muito tempo e é difícil um governo peitar essa questão. Por muito tempo, esse debate esteve interditado por conta daquela ideia errada de que o Brasil já cobra muito tributo.
Quando vamos discutir a questão tributária, temos que olhar menos para o quanto ela representa do PIB e mais para a composição, que é o nosso problema. Temos uma baixa tributação de pessoas muito ricas.
Não é à toa que a proposta ganhou popularidade com a sociedade e o Congresso sentiu isso. A população afetada pelo imposto mínimo é de 0,7% dos contribuintes e 0,2% da população geral. É um imposto que vai mitigar a distinção bem lá no alto, nos muitos ricos, em torno de 141 mil pessoas. Temos que corrigir a maior injustiça primeiro. Depois, podemos avaliar outras faixas de renda. É um problema que precisa ser resolvido por partes.
Como parte da reforma do sistema tributário, em janeiro do ano passado entraram em vigor as novas regras de IR para fundos exclusivos e offshores, justamente mirando estruturas usadas pelos super-ricos para reduzir sua carga tributária. O governo já analisou os resultados disso? Quais foram?
Foi uma medida super importante e em termos de arrecadação foi super positiva, mas ainda não temos números. Mas está ajudando a nossa meta fiscal e a custear o Estado brasileiro. Isso é bem óbvio para nós, pois corrige a relação entre renda do trabalho e renda do capital. Não temos ainda dados sobre mitigação da regressividade, mas arrecadamos bastante.
Segundo a Oxfam Brasil, não há justiça tributária sem transparência. Como avançar neste tema e garantir que a sociedade tenha acesso às informações?
Globalmente, já avançamos bem, por conta da questão das multinacionais, que exige essa troca de informações para coibir evasões para os paraísos fiscais. Do ponto de vista da tributação de pessoas, da renda, é muito complexo, pois temos leis de proteção relacionadas ao sigilo fiscal.
No entanto, eu diria que o Brasil bate um bolão em transparência. Em 2014, eu estava fazendo minha tese de doutorado. Até então, estávamos no escuro sobre a distribuição de renda no Brasil. Não tínhamos dados abertos do imposto de renda por algum tipo de estratificação. Em 2014, passamos a ter essa divulgação pela Receita Federal. Foi, de fato, a partir daí que a gente conseguiu ter um consenso, um diagnóstico claro, de que o imposto de renda tinha um problema.
O Brasil tributa muito o consumo e pouco a renda e o patrimônio. Como o país se compara com economias da OCDE nesse aspecto?
É verdade. Isso é ruim do ponto de vista da eficiência econômica, da desigualdade e da progressividade. Em termos de carga tributária, estamos mais perto dos países da OCDE, mas com uma carga mais baixa do que países da Escandinávia, por exemplo. Porém, nossa média é mais alta do que a da América Latina. Mas sempre gosto de lembrar: o Brasil é um país continental, heterogêneo, com mazelas sociais históricas e um grande estado de bem estar social e serviços públicos.
Já do ponto de vista de composição, estamos mais afastados dos países da OCDE, porque eles tributam mais renda e um pouco menos o consumo. Isso está muito ligado às estruturas da economia, uma diferença dos país mais desenvolvido, que têm economias e mercados de trabalho mais formalizados. Em países em desenvolvimento, o consumo é a nossa base mais segura, que nos traz mais certeza tributária e de arrecadação. No entanto, é muito importante mitigar isso ao longo do tempo.
Abrimos uma caixa de Pandora, mas é uma agenda longa. Ainda temos muita coisa para mexer para trazer justiça social e tributária ao Brasil.