
A biodiversidade brasileira, reconhecida como uma das mais ricas do planeta, constitui patrimônio estratégico de relevância ambiental, social e econômica. A regulação do acesso a esse patrimônio, bem como a proteção do conhecimento tradicional associado, ganhou destaque no cenário jurídico nacional com a promulgação da Lei nº 13.123/2015.
Passada uma década desde sua entrada em vigor, é possível verificar avanços, mas também gargalos significativos. A operacionalização da lei ainda enfrenta entraves estruturais, demandando aperfeiçoamentos normativos e maior participação social.
A lei estabeleceu e amadureceu conceitos centrais de muita importância, como o que é patrimônio genético, o que é conhecimento tradicional associado, além de definir os mecanismos institucionais de controle, como o Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e do Conhecimento Tradicional Associado (SisGen) e o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGen).
Diferentemente do regime anterior, que exigia processo burocrático para obter autorização que poderia durar meses, a nova legislação passou a adotar o princípio da autodeclaração e a lógica de responsabilização, mediante cadastro no SisGen. A substituição do regime de autorização prévia proporcionou maior agilidade aos procedimentos de pesquisa e desenvolvimento.
O SisGen, embora alvo de críticas, representou um avanço institucional ao centralizar as informações sobre as atividades de acesso, facilitando o monitoramento e a transparência. Hoje, tem-se mais de 80 mil cadastros de acesso efetuados e cerca de 21 mil notificações de produto.
Apesar dos avanços, a implementação da Lei nº 13.123/2015 enfrenta obstáculos significativos. O primeiro, e possivelmente mais importante deles, reside na dificuldade de operacionalização do SisGen, cuja interface técnica, instabilidades recorrentes e limitações funcionais ainda comprometem sua plena efetividade.
Até hoje, decorridos 10 anos, os estrangeiros ainda possuem dificuldades com o sistema, tendo em vista que não foi disponibilizada uma versão em inglês, com as ferramentas necessárias para que cumpram a legislação.
Inclusive, na Conferência das Partes sobre Biodiversidade, a COP16, realizada em 2024, o governo brasileiro anunciou que a versão do sistema para os estrangeiros estaria em elaboração. A data prevista para entrega seria em setembro de 2025 e o sistema está em fase de testes com diversas inconsistências sistêmicas, legislativas e diversos campos ainda em português.
Benefícios a comunidades
A repartição de benefícios com comunidades, eixo central da norma, continua sendo um ponto frágil. A ausência de regulamentações específicas para alguns setores, aliada à baixa efetividade dos mecanismos de fiscalização, contribui para a perpetuação de assimetrias no uso da biodiversidade.
Atualmente, o fundo conta com um valor em torno de aproximadamente R$ 9 milhões de reais, que possui pouca aplicação prática, deixando, assim, de cumprir sua função principal, que é a conservação da biodiversidade ou fomento a bioeconomia.
Outro aspecto crítico é a complexidade regulatória. Apesar da implementação “simples” – pois basta realização de cadastro autodeclaratório e pagamento de repartição de benefícios em situações já pré-determinadas –, a legislação possui uma linguagem de difícil entendimento e com diversas normativas esparsas, que buscam trazer esclarecimentos e regular os gargalos. Como, por exemplo, ampliar o rol do que não é considerado acesso ao patrimônio genético brasileiro, mudar forma de repartição de benefícios, extensão de prazo para regularização e realização de cadastros de acesso no SisGen.
Em um contexto internacional, comparando com as legislações de acesso e repartição de outros países, como Peru, Filipinas e Índia, a legislação brasileira se destaca por ser de fácil aplicação e ter previsibilidade na repartição de benefícios, com valores pré-definidos, o que é bastante atrativo para investidores e empresas. Em outros países, a repartição de benefícios deve ser negociada entre as partes, não existindo um padrão ou contratos pré-determinados, que ampliam a insegurança dos projetos.
Além disso, o escopo material da legislação brasileira é claramente delimitado, restringindo-se ao acesso a espécies nativas ou àquelas que, embora exóticas, tenham adquirido características distintivas no território nacional. Diferentemente, legislações de outros países, como Índia, Vietnã e Bélgica, incluem no escopo espécies introduzidas ou exóticas, gerando uma maior gama de aplicação.
Caminhos
Diante do cenário traçado, torna-se imperioso refletir sobre caminhos possíveis para o aprimoramento do marco legal. Como, fortalecimento do SisGen, com melhorias técnicas e suporte aos usuários; regulamentação específica de setores estratégicos e o estímulo à adesão a acordos setoriais de repartição de benefícios; ampliação da participação das populações tradicionais, com respeito ao consentimento livre, prévio e informado; entre outros.
Contudo, nada disso pode ser feito, sem uma maior atuação do Ministério do Meio Ambiente e reforço do quadro de responsáveis pelo tema.
Ao completar dez anos de vigência, a Lei nº 13.123/2015 consolidou-se como um marco relevante na regulação do uso da biodiversidade no Brasil. Ainda que tenha promovido avanços em termos de segurança jurídica, institucionalização de procedimentos e reconhecimento de direitos, enfrenta desafios importantes no tocante à sua efetiva implementação.
A superação desses obstáculos exige compromisso político, aprimoramento normativo e, sobretudo, a construção de uma governança inclusiva e transparente, que respeite os saberes tradicionais e promova o uso sustentável do patrimônio genético nacional.
Luciana Gil, Sócia da área Ambiental e Mudanças Climáticas do Bichara Advogados. Especialista em Direito Ambiental e Gestão Estratégica da Sustentabilidade pela PUC/SP. Graduada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Caroline de Souza Fernandes, advogada, formada em Direito pela IBMEC-Damásio, pós-graduada em Direito Ambiental e Gestão Estratégica da Sustentabilidade pela PUC-SP, com atuação em direito da Biodiversidade e regulação do acesso a recursos genéticos, com ênfase na aplicação jurídica da Convenção sobre Diversidade Biológica e da legislação nacional correlata.