
Empresas com ações negociadas na bolsa brasileira são obrigadas a divulgar todos os anos um índice de disparidade salarial, que mostra a relação entre a maior remuneração individual paga a um de seus executivos e a mediana de todos os trabalhadores.
Os números referentes às remunerações de 2024 mostram que o abismo salarial tem crescido nas principais companhias do índice Ibovespa – que reúne as ações mais negociadas da bolsa de valores brasileira.
Entre as 15 empresas com maior peso, a disparidade média foi de 352 vezes em 2024, 26% maior que em 2023, de 280 vezes. Em 2022, o múltiplo médio foi de 298.
Ou seja: para cada R$ 1 pago aos funcionários no ano passado, a remuneração dos presidentes executivos (CEOs) ou dos presidentes do conselho de administração (chairman) foi, em média, de R$ 352. Da perspectiva de governança, quanto menor o número, melhor.
Em alguns casos, a disparidade salarial chega a ultrapassar as 1000 vezes.
O levantamento do Reset foi feito com dados coletados pelo especialista em governança Renato Chaves a partir das informações prestadas pelas próprias empresas à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) – confira a metodologia completa no fim da reportagem.
Este é o terceiro ano que as empresas de capital aberto brasileiras são obrigadas a divulgar esse tipo de informação. A expectativa é de que a transparência dada a esses dados paute a discussão em torno do abismo salarial nas empresas – e de que forma isso contribui para perpetuar a desigualdade social fora delas.
A redução da disparidade é uma agenda importante, segundo Alberto Mariani, consultor de governança. “Quanto menor a dispersão salarial, mais madura é a governança, teoricamente. Mas isso depende muito do tipo de negócio. Em empresas com mais trabalhadores de capital intelectual, a dispersão é menor. No varejo, o salário mínimo é o mais comum”, afirma.
Nos Estados Unidos, esse tipo de informação já é divulgado há bem mais tempo. A disparidade salarial entre as empresas que compõem o S&P, principal índice acionário americano, é de 268 vezes, segundo dados de 2024 da associação sindical americana AFL-CO. No Ibovespa todo, a relação é de 184 vezes. Ou seja, o abismo salarial na elite do índice é quase o dobro da média de todas as empresas que o compõem.
Gap salarial
Entre as 15 empresas de maior peso no Ibovespa, o frigorífico JBS é o que apresentou a maior disparidade: a maior remuneração no acumulado de 2024 foi de R$ 63,3 milhões, enquanto a mediana dos funcionários foi de R$ 56,4 mil, um múltiplo de 1.120 vezes.
Procurada pelo Reset, a empresa diz que o índice não representa o seu perfil salarial, pois não considera os demais países em que atua. Como os dados são referentes ao ano passado, o frigorífico entrou no levantamento porque ainda tinha ações listadas na bolsa brasileira à época. Hoje, elas são negociadas nos Estados Unidos.
“Considerando os 281 mil colaboradores no mundo, a razão é de 333 vezes”, disse a JBS em nota. Quanto à remuneração do executivo mais bem pago, afirmou que considera “desafios de gestão, metas de desempenho e critérios próprios de uma companhia global”.
Em segundo está a rede de hospital Rede D’or, com índice de 873 vezes. A empresa não respondeu ao pedido de comentários.
A companhia de aluguel de carros Localiza aparece na terceira posição, com disparidade de 601 vezes. Ela afirma que o indicador é reflexo de um plano de remuneração, para alguns executivos, que envolve pagamento por meio de ações com o objetivo de formar uma nova geração de acionistas de referência, com visão de longo prazo.
Em geral, parte da remuneração variável de altos executivos é realizada por meio de ações. Esse tipo de incentivo pode gerar possíveis conflitos de interesse, segundo Renato Chaves. “Tem que ser algo dosado. Se a remuneração colocar muito peso em ações, o executivo pode ser arrojado para obter resultado no curto prazo”, explica. “É sempre arriscado, porque a empresa pode estar incentivando riscos desnecessários.”
Joaquim Rubens, professor do Centro de Pesquisa Aplicada em Contabilidade e Análise de Dados da Fundação Getúlio Vargas (EBAPE-FGV), aponta a necessidade de ponderar a análise.
Segundo ele, companhias com receita e valor de mercado mais altos tendem a ter executivos com salários maiores. Há, ainda, as com grande necessidade de inovação, como no setor de tecnologia, que enfrentam desafios de retenção de talentos, estão em expansão acelerada ou têm alto valor de mercado.
Na outra ponta, há setores intensivos em mão de obra operacional, que em geral apresentam menor escolaridade. Também é preciso considerar a região do país onde a maior parte da operação da empresa. Isso poderia explicar, em parte, a disparidade em setores como frigorífico e varejo.
Na avaliação do professor da FGV, as consequências do abismo salarial no engajamento dos funcionários são discretas no Brasil e mais fortes em países como os Estados Unidos.
Abismo ainda maior
É de praxe que grandes responsabilidades sejam acompanhadas de salários à altura. Mas há pontos fora da curva que chamam a atenção.
Além da JBS, há outros dois casos dentro do Ibovespa em que a disparidade gira ao redor de 1.000 vezes, o que equivale a cinco vezes o gap salarial médio do índice.
A maior entre todas as 84 empresas do Ibovespa em 2024 foi a da rede de academias SmartFit, com um múltiplo de 1.193 vezes. Em valores absolutos: o executivo mais bem pago recebeu R$ 24,5 milhões no acumulado do ano, enquanto a mediana dos funcionários foi de R$ 20,5 mil. Procurada, a empresa não respondeu aos questionamentos.
Outro caso que chama a atenção é o da BRF, também do setor de frigoríficos. A disparidade entre a remuneração do CEO e o corpo de funcionários é de 931 vezes. Em 2023, o indicador era bem menor, de 294 vezes.
Segundo a companhia, o indicador pode não refletir de forma adequada a política de remuneração porque não engloba parte dos benefícios, a remuneração dos demais países em que atua e o perfil operacional de grande parte dos profissionais.
Disparidades muito altas podem criar distorções dentro da própria liderança, segundo Rubens, da FGV. Elas também. “Para o restante dos empregados, ela é menos sensível. Mas dentro da diretoria, pode dar sinais errados.”
Metodologia
Todos os dados salariais usados no levantamento, inclusive o indicador de disparidade, foram divulgados pelas próprias companhias no Formulário de Referência, atendendo a uma exigência da CVM. Eles foram coletados e tabulados pelo especialista em governança Renato Chaves.
Todos os cálculos de valor médio de disparidade salarial excluiu da conta as empresas estatais, pois possuem múltiplos muito abaixo do mercado e distorcem a análise, segundo Chaves. Nessas companhias, executivos recebem valores menores que seus pares em empresas de capital privado devido a regras de governança e remuneração alinhadas com o que é permitido no serviço público.
Do levantamento de 2024 foram excluídas Banco do Brasil, com múltiplo de 9 vezes, Petrobras (6 vezes) e Sabesp (8 vezes), que ainda não havia sido privatizada.
A partir dos dados do Ibovespa, a reportagem do Reset fez o recorte das 15 empresas com o maior peso no índice. As carteiras teóricas do Ibovespa usadas no levantamento foram as divulgadas pela B3 no último quadrimestre dos respectivos anos: 2022, 2023 e 2024.
Como remuneração total, a CVM considera tudo o que o gestor ou o empregado recebe (ou tem direito a receber) e que a companhia lançou como despesa: salário fixo, variável, benefícios, ações, pós-emprego, encargos etc.
O regulador do mercado de capitais exige que as empresas listadas devem revelar a maior remuneração individual, a mediana da remuneração dos empregados no Brasil e a razão entre esses dois valores.
Respostas das empresas
A reportagem procurou todas as empresas citadas. Abaixo reproduzimos na íntegra a posição das que responderam ao nosso contato.
SmartFit, Rede D’Or, Vale, Raia Drogasil, Bradesco, WEG, Eletrobras, BTG Pactual, Prio, Itaúsa e Equatorial não se pronunciaram. O espaço segue aberto.
JBS
“Esse índice não inclui a remuneração nos demais países em que a JBS atua. Considerando os 281 mil colaboradores no mundo, a razão é de 333 vezes. A remuneração dos executivos considera os desafios de gestão, metas de desempenho e critérios técnicos próprios de uma companhia global.”
BRF
“A BRF informa que o cálculo usado para o estudo pode não refletir de forma adequada a política de remuneração da companhia, uma vez que não considera fatores importantes, como os benefícios diretos e indiretos disponibilizados aos colaboradores, a remuneração paga nos demais países e o perfil operacional de grande parte dos profissionais, além da exclusão de funcionários que tenham menos de 1 ano de companhia. A BRF reforça que adota as melhores práticas de políticas de remuneração alinhadas ao mercado e cumpre as diretrizes estabelecidas pela CVM.”
Localiza
“A remuneração dos executivos, incluindo o CEO da Localiza&Co, é composta por três elementos, conforme prática de mercado: salários mensais (parcela fixa), bônus (parcela variável de curto prazo) e incentivo de longo prazo (variável). As parcelas variáveis estão sujeitas ao alcance das metas corporativas e individuais, previstas no contrato anual de gestão. O CEO e outros dois executivos participam do Plano de Acionista Administrador de Referência, que tem por objetivo formar uma nova geração de acionistas de referência com visão de longo prazo, por meio da concessão de ações que serão exercíveis no período de 10 anos de cada concessão.”
Ambev
A companhia afirmou que os detalhes sobre a política de remuneração estão todos no formulário de referência.
Itaú
“A remuneração dos executivos que atuam em cargos de administração no Itaú Unibanco é composta por valores fixos e variáveis, sendo que, no mínimo, 70% da remuneração variável (atrelada ao cumprimento de metas) é paga em ações ou instrumentos equivalentes, com liberação escalonada ao longo de três anos. Os critérios de avaliação para o pagamento dessa remuneração incluem desempenho individual, da área de negócios e do conglomerado, sempre em relação aos riscos assumidos. A política é revisada anualmente pelo Comitê de Remuneração e aprovada pelo Conselho de Administração, garantindo decisões colegiadas e alinhadas às melhores práticas de governança.”
B3
“O tema remuneração é tratado com muita atenção e diligência na B3. A razão entre a maior remuneração individual reconhecida no resultado e a mediana da remuneração considera não apenas salários, mas os demais componentes de remuneração como incentivos de curto prazo e incentivos de longo prazo
Para todos estes componentes da remuneração (fixa, variável de curto prazo e variável de longo prazo), a B3 segue diretrizes da sua estratégia de remuneração e busca alinhar a remuneração dos diversos níveis hierárquicos aos valores praticados pelo mercado, conforme verificado em pesquisas de remuneração. Com isso, busca-se garantir que a remuneração seja, em todos os níveis, coerente, competitiva e, ao mesmo tempo, consistente com o grau de responsabilidade de cada função.
Vale ressaltar que a maior remuneração, assim como as demais remunerações atribuídas aos cargos de gestão, possui uma composição mais representativa no pilar de incentivo de longo prazo. Destaque-se que, pela estrutura do incentivo, a despesa acumula os planos outorgados nos últimos 4 anos com valores apurados com base no preço da ação a mercado, de forma que o montante está sujeito às oscilações em decorrência do valor de mercado das ações da Companhia.”