Títulos sustentáveis: a timidez injustificável do Brasil na captação internacional

Imagine um país que ocupa o primeiro lugar em biodiversidade no mundo, o segundo em cobertura de florestas, está entre os “top 10” de PIB, possui uma matriz energética limpa, abundância hídrica, necessidades sociais e ambientais urgentes, um mercado de capitais desenvolvido e papel estratégico em segurança alimentar. Um país democrático, geopoliticamente neutro. Em que posição você imagina que esse país esteja na captação de dívida sustentável?

Não li seu pensamento, mas não: esse país é irrelevante na captação de dívida sustentável. Entre os 50 maiores, o Brasil ocupa a 48ª posição na relação entre dívida sustentável e PIB. Nesse ranking, o Chile é 9 vezes mais representativo; Belize, 5; México e Chipre, 2. Até o Uruguai, Gabão e Uzbequistão estão ligeiramente à frente. O Brasil segue mal acompanhado ao lado de Malásia, Honduras, Qatar e Romênia.

Quando falo de títulos sustentáveis aqui me refiro à soma dos green, social e sustainability bonds, além dos sustainability-linked bonds (SLBs).

Venho estudando esse assunto há bastante tempo e até a mim esse indicador surpreendeu. Com base nos dados da Environmental Finance Data – um dos maiores e mais completos bancos de dados de títulos sustentáveis – e nos dados de PIB do Banco Mundial, calculei essa relação para uma lista de países.

Esse indicador dívida sustentável/PIB é imperfeito, claro. Ele é influenciado por fatores como juros elevados, desvalorização cambial e diferentes propensões ao endividamento e ao investimento. Mas, ainda assim, sem nenhuma pretensão acadêmica, é um indicador objetivo que oferece um retrato incômodo da “subparticipação” do Brasil em um mercado no qual deveria ser protagonista.

No frigir dos ovos: estamos abocanhando uma fatia muito menor do que poderíamos.

Mas esta não é uma crítica mal-humorada ao Brasil. Reconheço os avanços e a liderança do governo e de setores que estão na vanguarda. E trago dados novos sobre o tamanho do problema e proponho caminhos.

Nesta coluna, quero mostrar que: (1) a oferta de capital existe; (2)  o Brasil não ocupa o lugar que poderia na demanda; e (3) os conselhos de administração podem – e devem – enfrentar essa timidez.

Oferta

A oferta de capital existe, sim. Onde? 

Não, eu não estou em outro planeta. O financiamento climático é insuficiente. Mas há bolsões de liquidez para sustentabilidade – como a Europa. Lá, quase 60% dos ativos sob gestão estão relacionados à sustentabilidade, segundo dados da Morningstar. Isso mesmo: 60%. 

Sustentabilidade na Europa é mainstream, não nicho. São US$ 7 trilhões em ativos impulsionados por um ecossistema regulatório que gerou demanda cativa de investidores institucionais, de varejo e fundos de pensão. 

Em títulos, a Europa também lidera: representa 47% dos US$ 5 trilhões já emitidos globalmente. EUA, para quem se preocupa com o efeito Trump, responde somente por 14% do total.

Mesmo com retração de 17% nas emissões globais em 2025 (dados extrapolados até maio), o volume segue robusto: estima-se que entre US$ 800 bilhões e US$ 1 trilhão devem ser emitidos anualmente.

Os green bonds ainda são os preferidos, pela transparência no uso dos recursos. Mas os sustainability-linked bonds (SLBs) crescem rapidamente, pela flexibilidade e aplicabilidade mais democrática — tanto por atingirem ratings de crédito mais baixos quanto por poderem ser usados por empresas de qualquer setor (qualquer empresa pode ser mais sustentável do que é, independentemente de estar em um setor verde).

O Brasil já capta esse movimento: 24% das nossas emissões são SLBs, contra apenas 6% no mundo.

É verdade que as preocupações com greenwashing prejudicam os SLBs. Mas isso depende da seriedade da empresa emissora e da competência de quem conduz a emissão em assegurar três quesitos: robustez, relevância e ambição nas metas e nos processos.

Outros tipos de títulos que o Brasil deveria acompanhar nessa nova fase de ESG: transition e blue bonds. E não menos importante, há apetite para  os títulos sociais que representam 17% do total no mundo. No Brasil, apenas 4%. Não deve ser por falta de problemas. 

As vantagens? Alguns segmentos ainda conseguem capturar o prêmio verde (“greenium”) – um benefício de preço pela natureza sustentável do título, principalmente em setores mais poluentes. Mas mesmo sem greenium, a principal vantagem é acessar fontes de liquidez com demanda cativa que, de outra forma, estariam fechadas.

Além disso, o salto percebido de governança e a inserção em um “clube exclusivo” são benefícios intangíveis que se refletem na reputação da empresa – e, ao fim, no custo do capital, nacional ou internacional.

Demanda 

O Brasil ainda não ocupa o lugar que pode.

Quanto aos fundos europeus classificados como Artigos 8 e 9 – que somam os US$ 7 trilhões mencionados acima – o Brasil tem participação quase nula.

Em títulos sustentáveis, com emissão de cerca de US$ 50 bilhões, o Brasil é o 20º país em volume, detém apenas 1% do market share e, na relação dívida sustentável/PIB, como dito na introdução, está na posição 48 no ranking dos 50 maiores. 

Cada país tem sua realidade: câmbio, juros, capacidade de investimento. Sim, esses são entraves que precisam ser enfrentados estruturalmente e que dificultam a comparação perfeita. Mas o financiamento climático não pode esperar.

Outros países com dificuldades semelhantes ou maiores seguem avançando.

Nada justifica essa posição. E muito menos se levarmos em conta que a maior parte dos investimentos aqui param de pé e dão retorno mesmo sem capital concessional ou blended finance. O que, na minha experiência, é diferente da maior parte dos projetos da África que apoio como advisory, por exemplo.

Portanto, o Brasil também pode – e deve – avançar. Soluções criativas e competentes como o Eco Invest e o TFFF, do Plano de Transformação Ecológica, já estão desenhadas. Precisam apenas ganhar tração. Repito meu mantra: em contexto de restrição fiscal, o governo deveria concentrar seus recursos mais em hedge cambial e garantias – e menos em investimento direto.

Indicadores-chave: Brasil vs. referência global
IndicadorBrasilReferência Global 
Posição na relação dívida sustentável/PIB48º entre os 50 maioresChile: 3º, (9x)  Belize: 12º (5x) , México: 35º (2x)
Participação em títulos sustentáveis (market share)1%Total global: ~US$ 5 trilhões
Proporção de SLBs nas emissões brasileiras24%Média global: 6%
Proporção de títulos sociais4%Média global: 17%
n. Fundos  SFDR Art. 8/9 Dado não disponível, mas estima-se baixoEuropa: ~US$ 7 trilhões em ativos ESG
Crescimento em 2025 (YTD)-37%África: +34%, América Latina: -40%, Oriente Médio: -5% Europa: -14%
Fontes: A exceção dos dados SFDR e Morningstar, demais calculados pela autora com base nas informações da Environmental Finance Data (até maio/2025)  

Crescimento

O problema não é apenas histórico e de estoque, mas também de fluxo. Em 2025 até maio, enquanto a África cresceu 34% em emissões e o Oriente Médio manteve-se estável, a América Latina seguiu a tendência dos EUA e retraiu cerca de 40%. O Brasil acompanhou essa tendência, com queda de 37%.

Quando avaliamos o desempenho por setor, alguns setores já se destacam na captação de capital temático – como papel, saneamento, agro e energia – superando seus pares globais.  Empresas como Suzano, Aegea, Natura, Raízen, Itaú desbravaram esse mercado e  permanecem ativas. Em contraste, governos (federal, estaduais e municipais), bancos, construção e manufatura ainda têm participação tímida.

Oportunidades seguem abertas para todos – especialmente em energia, agro, florestas, transporte, logística, saneamento, habitação e setor financeiro. Estados e municípios também podem avançar – são emissores consideráveis em outros países -, mas é preciso viabilizar instrumentos que respeitem a Lei de Responsabilidade Fiscal.

Conselhos 

Os conselhos de administração das empresas têm um papel a desempenhar para enfrentar essa timidez, ajustando o foco do risco para oportunidades. 

Os conselhos no Brasil já avançaram na gestão de riscos climáticos. As pautas seguem tomadas por avaliações de riscos e relatórios.  Mas não é errado dizer que o foco em oportunidades de sustentabilidade  ainda é baixo. E a capacitação para explorar oportunidades na estratégia de capital ainda não veio na velocidade necessária. 

Na minha experiência, a seguir,  as principais funções de um conselho que quer aproveitar as oportunidades de capital sustentável.

Em mapeamento de oportunidades:

• Mapear bolsões de liquidez internacional;

• Liderar o matchmaking com investidores temáticos (eu apelido essa parte da minha jornada de “ESG Tinder”);

• Monitorar momentos de restrição de oferta (vencimentos concentrados nos próximos anos);

• Ler movimentos de mercado (como queda de juros);

• Acompanhar o cenário geopolítico e regulatório (EU-Mercosul, Japão, China, NDCs);

• Entender elegibilidade em frameworks internacionais (ex: Blue Bonds não precisam ser costeiros; SLBs são mais indicados em certos contextos; diversidade crescendo como indicador);

• Planejar Capex proativamente – e não perder o próximo investimento estratégico;

• Ler o Brasil à luz de seu potencial de liderança sustentável.

Em governança e controle:

• Assegurar ambição nas metas dos projetos;

• Garantir governança robusta e independente na emissão, gestão dos recursos e monitoramento dos KPIs/SPTs;

• Engajar CFO, comitês de auditoria, ESG e inovação (com Capex e finanças no centro da conversa e não relatórios);

• Supervisionar os riscos de greenwashing (que nem sempre vêm da má fé);

• Liderar a criação do framework corporativo de títulos sustentáveis.

E, não menos importante: quando a auditoria externa avaliar a emissão, o papel do conselho na estratégia de sustentabilidade, sua fluência no tema e até a diversidade de gênero serão considerados.

Conclusões: em suma, se a empresa quiser acessar esse capital, o conselho precisa ser o primeiro a se mover. Essa liderança começa dentro da empresa, com estratégia, governança e ambição, mas precisa se afirmar no mundo. É lá fora, na “rua” – com investidores, reguladores e parceiros – que as oportunidades estão e que o conselheiro pode fazer mais diferença. Essa jornada exige articulação, presença, fluência global, networking (e “pitch”) e, sim, disposição para gastar sola de sapato. Muita.