OPINIÃO

Na crise climática, o acesso ao seguro é um direito?

Magnitude das perdas causadas pelas mudanças do clima amplia a demanda social por coberturas e desafia o setor e poder público

Na crise climática, o acesso ao seguro é um direito?

Nas primeiras páginas de seu livro “A Era do Capitalismo de Vigilância” (Intrínseca, 2021), a filósofa e professora emérita da Universidade Harvard Shoshana Zuboff partilha um comovente relato do seu encontro com a imprevista força da natureza: Em uma noite tempestuosa, a queda de um raio deu início a um incêndio de grandes proporções que reduziu sua casa a cinzas. Nas suas palavras: “Eu estava cega para condições que não tinham precedentes na minha experiência”. 

Recentemente, o fogo devastou cidades e causou elevadas perdas na Califórnia. De acordo com o AccuWeather, as perdas econômicas estão entre US$ 250 bilhões e US$ 270 bilhões. Desse total, estima-se que as indenizações de seguros alcançarão entre US$ 35 bilhões e US$ 45 bilhões. Esses incêndios, no entanto, não foram causados pela casualidade de um raio, mas são uma grave consequência da crise do clima.

No Rio Grande do Sul, foi a severidade das chuvas que causou danos. Segundo levantamento de dezembro de 2024 da Superintendência de Seguros Privados (Susep), autarquia federal que supervisiona e regula a atividade seguradora e resseguradora no Brasil, a catástrofe trouxe perdas de aproximadamente R$ 89 bilhões ao Estado.

Os sinistros avisados para a cobertura de seguros por danos causados pela catástrofe, até setembro de 2024, somaram R$ 6 bilhões, ressaltando uma lacuna de proteção que, no caso da catástrofe do Rio Grande do Sul, pode chegar a impressionantes 93%, segundo a Susep.

A magnitude das perdas causadas pela crise do clima amplia a demanda social por coberturas de seguros e desafia o setor, em conjunto com os Estados nacionais, a formular alternativas de proteção capazes de atender às expectativas dos segurados sem renunciar à imprescindível sustentabilidade financeira da operação de seguros.

Garantir o acesso aos seguros em um “mundo em chamas”, em que os eventos climáticos se tornam cada dia mais extremos, é mais do que uma forma de socialização de perdas e preservação de bens e interesses. Trata-se de uma necessidade para que cidadãos e cidadãs, assim como empresas, possam ter protegidos os meios pelos quais exerçam os seus direitos fundamentais.

Partindo do pressuposto de que estamos todos juntos na mesma nau, o planeta Terra, é essencial afirmar o direito de acesso ao seguro. 

Em muitos casos, quando se materializam riscos catastróficos como os riscos do clima, é na cobertura de seguro que os indivíduos podem se amparar para materialmente retornar à condição de fruição de outros direitos fundamentais, como o à moradia no caso dos seguros residenciais, ao transporte no caso de seguros auto, ao trabalho dos produtores rurais no caso dos seguros rurais, dentre outros.

A propósito do tema, foi oportuna a iniciativa da Susep de constituir um grupo de trabalho com o objetivo de elaborar um relatório que poderá subsidiar o Conselho Diretor da instituição na elaboração da Política Nacional de Acesso ao Seguro.

A decisão da autarquia de pautar o debate sobre o acesso na agenda regulatória dos seguros se conecta com a Constituição Federal de 1988, que estabeleceu a segurança como um objetivo do Estado Democrático (preâmbulo), uma garantia fundamental dos cidadãos brasileiros (art. 5º, caput) e um direito social (art. 6º, caput), assim criando as bases normativas para a declaração do Direito de Acesso ao Seguro.

O conceito de segurança presente na Constituição não se encerra com a provisão de segurança pública. Pelo contrário, a segurança prometida pela Constituição tem sentido amplo, sendo o Sistema Nacional de Seguros Privados, ao lado do Sistema Nacional da Seguridade Social, provedores de segurança aos cidadãos e cidadãs brasileiras.

A Política Nacional de Acesso ao Seguro deve aproveitar a oportunidade histórica de aprofundar os vínculos de solidariedade social ao orientar o setor no sentido da oferta inclusiva de seguros e da realização da justiça distributiva. Afinal, os seguros são um poderoso instrumento de combate à desigualdade econômica e de justiça social.

Para a função social do seguro no combate à desigualdade econômica, basta imaginar, por exemplo, que duas famílias, uma rica e segurada, e outra de baixa renda e sem acesso a seguros, tenham as suas casas destruídas por um evento climático extremo. 

Após a destruição das respectivas casas pela catástrofe, a família rica encontrará nos seguros a justa reparação que irá preveni-la de suportar as perdas financeiras. A família pobre terá de assimilar o impacto financeiro da destruição de sua casa, muitas vezes o principal capital acumulado pela família ao longo de anos. Como resultado, a família rica permanecerá rica enquanto a família pobre ficará mais pobre, e a desigualdade terá aumentado.

Assim, quando elaborada e publicada pela Susep, a Política Nacional de Acesso ao Seguro deverá ter sensibilidade para considerar a utilidade pública dos seguros privados na provisão de segurança ao Brasil, sobretudo no contexto de agravamento da crise do clima.

A medida, portanto, deverá ter uma dupla função. Além de declarar o direito de acesso ao seguro, então, deverá anunciar um novo tempo, no qual nenhum brasileiro ou brasileira ficará “inseguro” diante de condições climáticas sem precedentes em nossa experiência coletiva.

* Vitor Boaventura é advogado de seguros, resseguros e previdência no Veirano Advogados