Mudança climática, que nada! Eventos climáticos extremos são cíclicos, sempre existiram. Se e quando eles afetam os negócios, basta invocarmos a famosa, antiga e desde sempre eficaz cláusula de força maior – tudo resolvido!
Governança climática para que, certo?
ERRADO.
Tenho certeza que muitos profissionais que trabalham com temas de clima e sustentabilidade já ouviram isso em alguns (ou muitos) momentos da carreira. Pois bem, o que sempre funcionou dependia de certas condições ou padrões que estão sendo quebrados.
Uma olhadinha na espiral do clima da NASA atualizada até 2024 deveria ser suficiente para mostrar, com dados históricos (nossa tão conhecida e confortável “visão de retrovisor” das matrizes de risco), que as temperaturas médias anuais estão diferentes, para dizer o mínimo.
Ou quem sabe uma passada de olhos pelo noticiário com o trem que descarrilou no Rio porque as altas temperaturas dilataram a via férrea; ou o asfalto derretendo em Santa Catarina graças ao recorde de calor deste fevereiro; ou o representante da Embrapa afirmando que é possível que o calor intenso prejudique a safra de soja deste ano.
Mas, mantendo o confortável business as usual em plena força e vigor, suponhamos que essas médias anuais de temperatura um tanto diferentes sejam uma invenção e que, como excelentes líderes que somos, manteremos o foco no resultado financeiro de curto prazo.
Se e quando houver algum impacto materializado que possa ter sido causado por eventos climáticos, colocamos o contrato na mesa e nos isentamos de responsabilidade.
Aqui no Brasil, o fundamento legal da força maior está no Código Civil, que nos ensina que deve ocorrer um fato necessário, cujos efeitos não se podem evitar ou impedir, para que se possa eximir da responsabilidade de cumprimento da obrigação contratada e de sua indenização, desde que expressamente prevista tal isenção. Por definição clássica, aqui temos os eventos ocasionados pelas forças da natureza – tempestades, secas, inundações etc.
Agora, e se eventos climáticos extremos, pelas suas características recentes – maior intensidade e frequência –, passem a ser qualificados como minimamente previsíveis e em alguma medida mitigáveis?
Somemos a esse cenário o avanço tecnológico que vem aumentando a acurácia das modelagens de risco climático.
Será mesmo que continuaremos classificando a materialização de riscos climáticos físicos agudos como inevitável ou imprevisível? Ou severa o suficiente para continuar configurando força maior – afinal temos dados meteorológicos comprovando que em regiões diversas o volume de chuvas de extensos períodos tem se concentrado em poucos dias… e isso é um único exemplo. A tempestade de hoje seria a mesma de dez anos atrás, mesmo que com volume de chuva muito inferior?
Que diremos então sobre a materialização de riscos climáticos físicos crônicos – o aumento gradual do nível do mar impactando infraestruturas costeiras, por exemplo? Se esse risco se materializa de forma gradual, em alguma medida ele se torna previsível (nos limites da modelagem climática disponível).
Alguma previsibilidade ou a possibilidade de implementar medidas mitigatórias em alguma extensão fazem com que o “lastro legal” da força maior vire fumaça e aí ou cumpre, ou indeniza, nada de inadimplir obrigação colocando a culpa na mãe natureza.
Mais dia, menos dia, esse cenário vira realidade por aqui.
Por isso, estou curiosa para ver até quando continuaremos invocando livremente a força maior contratual para deixar de honrar obrigações e não prover indenizações nos casos de eventos climáticos.
Por outro lado, avaliando negócios afetados diretamente por eventos climáticos, a exemplo da aviação, me pergunto se indenizações por cancelamentos de voos em razão de condições meteorológicas serão impactadas. Esse cenário seria muito interessante, porque traria a tiracolo a conclusão lógica de que riscos climáticos precisariam estar inseridos no planejamento estratégico e adequadamente tratados no sistema de gerenciamento de risco corporativo.
Será mesmo que os negócios prejudicados que possuam o mínimo de governança climática não estão prontos para “derrubar a tese” de imprevisibilidade e impossibilidade de mitigar os efeitos do evento climático danoso?
Aliás, para os negócios com governança climática implementada, que tal pensar em reescrever cláusulas de força maior para prever formas de compartilhar responsabilidades, balancear as perdas e/ou aumentar as chances de cumprimento da obrigação frente ao novo cenário climático? Para os interessados, recomendo fortemente acessar os climate contract playbooks elaborados pelo The Chancery Lane Project.
Fico pensando se a quebra da força maior para eventos climáticos fará com que o resultado financeiro no curto prazo tome um chacoalhão e faça com que nossas lideranças reavaliem a rota, implementando, de vez e de verdade, governança climática. Aguardemos.