COLUNA - BRUNO GALVÃO

A UE vai retroceder em suas regras ESG?

O Green Deal enfrenta o risco de enfraquecimento antes mesmo de mostrar seus efeitos, escreve Bruno Galvão, novo colunista do Reset

A UE vai retroceder em suas regras ESG?
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Quem acompanha a sopa de letrinhas europeia e a miríade de regras decorrentes do ambicioso European Green Deal vai ter um ano de fortes emoções, para dizer o mínimo.

O avanço dos partidos de extrema direita nas eleições para o Parlamento Europeu, e também em países como Alemanha e França, aponta para um rearranjo das forças políticas no continente – com possíveis mudanças em legislações e diretivas que afetam empresas do mundo todo, inclusive as brasileiras.

Tivemos recentemente uma grande pressão para suavizar o regulamento antidesmatamento na discussão de prorrogação de seu prazo de vigência. O Parlamento quase conseguiu incluir regras novas que fariam os europeus saírem ilesos da nova regra. No fim, passou apenas a prorrogação do prazo, mas o processo deu força para o movimento de reformas, e logo começou a discussão sobre a obrigação de reportes corporativos em sustentabilidade e regras de monitoramento de direitos humanos, duas das medidas com alcance muito além das fronteiras da UE.

Ainda não é possível afirmar que haverá mudanças, mas as companhias que fazem negócio com o bloco precisam ficar atentas às movimentações que prometem chacoalhar Bruxelas ao longo deste ano.   

Aos que chegaram agora na conversa, uma breve recapitulação. Em 2019 a Comissão Europeia apresentou sua política de transição energética, com vistas a se tornar neutra em carbono em 2050.  A meta intermediária para 2030 é de redução das emissões de gases de efeito estufa em 55% (em comparação aos níveis de 1990). O Green Deal não deixou de lado o aspecto social e humano inerente a essas questões, cravando o lema “nenhuma pessoa e nenhum lugar será deixado para trás”.

Desde então, diversas propostas legislativas foram aprovadas nas mais diversas áreas. Energia, transporte, construção civil, compras públicas, agricultura, clima, meio ambiente, indústria – a lista é grande. Foram aprovadas a taxonomia de investimentos, a CSRD (Corporate Sustainability Reporting Directive) e a CSDDD (Corporate Sustainability Due Diligence Directive). Estas duas últimas siglas são conhecidas no Brasil pelo impacto que terão nos negócios de diversas empresas, seja de maneira indireta, com a pressão de compradores europeus por documentos e informações, seja diretamente, com obrigações a serem cumpridas pelas companhias brasileiras.

A regra de taxonomia é um sistema de classificação adotado em junho de 2020 para definir quais atividades econômicas podem ser consideradas sustentáveis, com parâmetros uniformes para investimentos ESG, no intuito de alcançar maior transparência e combater o greenwashing.

A CSRD, por sua vez, foi adotada em dezembro de 2022 com obrigações de relatórios sustentáveis em uma dupla perspectiva. As empresas têm de analisar como suas atividades e cadeias de fornecimento podem ser influenciadas por fatores externos (mudanças climáticas, situações de vulnerabilidade social, por exemplo) e reportar sobre seus impactos – negativos e positivos – na sociedade e meio ambiente.

A CSRD pode ter implicações diretas para empresas brasileiras que tenham um faturamento anual líquido na União Europeia igual ou maior que €150 milhões, e tenham pelo menos uma sucursal com um volume de negócios de € 40 milhões. rande parte das empresas afetadas  vai começar a trabalhar nos relatórios a serem publicados em 2026, com informações de 2025.

A CSDDD foi a última norma a ser aprovada, em abril de 2024, e exige que empresas realizem um amplo exercício de due diligence sobre os impactos ambientais e de direitos humanos de suas operações e de sua cadeia de valor, dentro e fora do território europeu. Empresas brasileiras também podem ser diretamente afetadas, desde que tenham um faturamento líquido maior ou igual a € 450 milhões, a partir de 2029, ou maior ou igual a € 1,5 bilhões, a partir de 2027.

Mudanças à vista?

Depois de anos de discussões e arranjos, temos uma nova e inesperada fase no horizonte. Em reação ao novo Parlamento Europeu, eleito no final de 2024, e ao aumento da pressão de partidos de extrema-direita no discurso político, as forças majoritárias encamparam palavras de ordem como “desburocratização” e “competitividade”.

Reconduzida à presidência da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen apresenta seu objetivo de cortar a burocracia em 25%, num exercício matemático curioso. Nasce a ideia do omnibus, uma ferramenta legislativa para discussão de diversas regras de forma integrada.

Ostensivamente, o objetivo é a desburocratização, isto é, a pretensão anunciada foi de harmonizar a aplicação formal das regras com o objetivo de facilitar a entrega de relatórios pelas empresas, sem comprometer o conteúdo material das regras. A taxonomia, a CSRD e a CSDDD foram logo incluídas nos discursos, mas são diversas as pressões políticas para que a revisão não pare por aí, esgarçando os limites iniciais de mera simplificação formal.

O Partido do Povo Europeu, partido de centro-direita ao qual a Presidente von der Leyen é filiada, exigiu reduções significativas na agenda ESG. Segundo o partido, é necessário evitar um peso excessivo para pequenas e médias empresas decorrente de um efeito cascata das novas regras, o que seria uma ameaça ao futuro econômico da União Europeia.

No último dia 20, o governo francês publicou uma carta pedindo a reconsideração de pelo menos 18 legislações. Para os franceses, a CSDDD deveria ser indefinidamente suspensa e a CSRD deveria ter uma drástica redução nos pontos a serem relatados. A porta-voz do governo francês, Sophie Primas, disse acreditar que a União Europeia percebeu que “foi um pouco longe demais”.

A Alemanha não deixou nem a ressaca da virada de ano ser curada e em 2 de janeiro de 2025 publicou uma carta endereçada à Comissão. O pedido é para prorrogar a CSRD por ao menos dois anos, além de aumentar o número de funcionários necessários para que a empresa seja parte do escopo.

O outro lado

Existem também forças contrárias à ideia do omnibus, ou ao menos ressaltando os seus riscos. As ONGs WWF e Frank Bold se posicionaram favoravelmente à CSRD e, juntamente com diversas outras instituições, pediram para que a UE parasse de “brincar de ping-pong com a legislação”.

Mas não foram apenas ONGs que criticaram este movimento político. Em carta enviada à Comissão, grandes empresas incluindo   Nestlé, Unilever, Mars, DP World, NEI Investments, Ferrero, Primark e L’Occitane, manifestam apoio à regulamentação ESG, em especial à CSDDD, apontando o papel que têm de criar um ambiente de resiliência de longo prazo e uma vantagem competitiva para a indústria europeia. Falam o óbvio: empresas necessitam de consistência, clareza e confiabilidade nas regras – o que estaria em risco com a proposta de omnibus. Pedem que o foco dos trabalhos da Comissão seja na implementação prática das regras, com o amplo diálogo com os setores envolvidos para a publicação de guias que facilitem a compreensão e o cumprimento das regras.

Exigências diluídas

Caso as grandes forças políticas mantenham seus discursos, corremos o risco de ter essas regras abrandadas, a ponto de comprometer não só seus objetivos específicos, mas a própria trajetória transformadora do Green Deal. Fica a dúvida sobre o que mudou de 2019 para cá. Quais fundamentos técnicos estão sendo apresentados para refutar a necessidade de uma profunda transformação mundial para uma economia sustentável, sob pena de aumentarmos a cada ano a distância na implementação da meta do Acordo de Paris?

O discurso simplista, puxado pela extrema-direita, de que a crise econômica europeia está atrelada ao aumento das regulamentações ESG carece de embasamento. Tais regulamentos não foram aplicados a tempo suficiente para que tivéssemos resultados palpáveis decorrentes de suas obrigações. Ainda que se aponte para o custo da energia como um dos fatores para a retração da economia alemã, o tema em nada se relaciona com a CSDDD, a CSRD ou o regulamento de Taxonomia.

Mudanças significativas sem elementos concretos e técnicos, sem uma experiência minimamente duradoura que possa apontar para a necessidade de ajustes, parece dar um sinal de temeridade e insegurança. Evitar custos, sob o fantasma da competitividade imediatista e desenfreada, foi o que nos trouxe aos eventos climáticos extremos que vivemos cada vez mais frequentemente. Juntar-se ao coro de “drill, baby, drill” de Trump terá um custo ambiental, social e, principalmente, econômico, de proporções catastróficas, deixando tudo e todos, definitivamente, para trás.