A empresa que investiu milhões nos créditos de carbono do Tocantins

Gigante das commodities, Mercuria Energy Group tem veículo de R$ 3 bilhões para investir em soluções da natureza; Estado foi o primeiro do mundo a se submeter à certificação no sistema jurisdicional

A empresa que investiu milhões nos créditos de carbono do Tocantins
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O Tocantins foi o primeiro Estado brasileiro a submeter seu sistema jurisdicional ao ART Trees, padrão técnico mais usado na verificação de créditos de carbono gerados em uma jurisdição inteira em vez de propriedades isoladas, o modelo mais comum hoje em dia. 

O anúncio foi feito durante a COP29 de Baku, em novembro passado. O governo do Tocantins firmou um acordo com a Mercuria Energy Group, uma das maiores tradings de commodities de energia do mundo. A empresa suíça tem duas décadas de experiência na comercialização de óleo e gás, energia elétrica, biocombustíveis, produtos agrícolas e metais – e, mais recentemente, em créditos de carbono.

Há quatro anos, a Mercuria firmou o compromisso de que 50% de todos os novos investimentos até o fim de 2025 seriam feitos em projetos renováveis e sustentáveis.

Nesse embalo, a empresa lançou no início de 2023 o Silvania, um veículo independente focado em investir em soluções baseadas na natureza. O fundo nasceu com US$ 500 milhões (cerca de R$ 3 bilhões na cotação atual) na conta – metade do valor aportado pela empresa e a outra metade, por Marco Dunand, seu cofundador e CEO. 

A expectativa é que o Silvania seja uma plataforma de investimentos que resultem em créditos de carbono de alta qualidade, gerem benefícios sociais ou aumentem a preservação da biodiversidade no uso da terra.

O veículo mira investimentos de sequestro de carbono na América do Norte e redução da emissão de metano na África e na Ásia. Já na América Latina, o foco está no manejo sustentável de florestas, restauração de áreas florestais e mangues degradados e no apoio a programas de larga escala para conter o desmatamento por meio dos créditos de carbono jurisdicionais. 

“O Silvania tem um apetite por risco e pelo retorno de longo prazo que o investidor tradicional muitas vezes não tem”, diz ao Reset Celso Fiori, líder de soluções baseadas na natureza e bioenergia da Mercuria no Brasil. “Nosso foco hoje, inclusive no Brasil, é desenvolver mais projetos jurisdicionais.”

O Tocantins recebeu R$ 14 milhões da companhia, até o momento. A expectativa é que o Estado gere mais de 50 milhões de créditos até 2030, o que representa uma receita estimada acima de R$ 2,5 bilhões, segundo o governo. O Acre e o Pará também têm planos com os créditos jurisdicionais.

Esse tipo de ativo climático com base na natureza ainda é uma parcela mínima dos negócios da companhia. Estabelecer o Silvania vem também uma tentativa da empresa de impulsionar o amadurecimento do mercado de carbono, enquanto a empresa tateia a comercialização desses ativos.

A Mercuria, que não é listada em bolsa, está presente em 50 países e faturou, em 2023, US$ 176 bilhões. Dunant e o cofundador Daniel Jaeggi são os sócios-controladores, enquanto o restante do capital é pulverizado entre diversos investidores, dos individuais aos fundos de pensão. 

Carbono estatal?

Os créditos jurisdicionais, embora não sejam uma ideia nova, ainda são relativamente recentes no mercado voluntário. Essas metodologias que levam em conta grandes áreas têm crescido ao mesmo tempo em que os projetos individuais, os predominantes no Brasil, sofrem uma grave crise de credibilidade.

No papel, o Jurisdictional REDD, ou J-REDD, tem o mesmo objetivo do REDD+: conservar uma área de floresta sujeita à pressão de desmatamento, evitando assim aquela emissão de carbono. Na prática, porém, as lógicas são bem diferentes. 

O J-REDD é emitido por jurisdições inteiras, como o Estado do Tocantins ou toda a Costa Rica. Essa característica é vista com bons olhos por alguns especialistas por evitar que o “vazamento” de carbono, ou seja, que o desmatamento que ocorria em determinada região seja apenas empurrado para outra área próxima em resposta aos projetos de conservação. 

Além disso, esses créditos só são gerados à medida que as jurisdições consigam diminuir sua taxa de desmatamento em relação ao que seria esperado com base nos dados dos anos anteriores. 

Chamada linha de base, essa medida é essencial para contar a devastação que foi efetivamente evitada. Uma das críticas aos projetos individuais de REDD+ é que as metodologias permitem que os desenvolvedores estabeleçam suas próprias bases de comparação – o que abriria a possibilidade de um “superfaturamento” de créditos gerados.

No caso do Tocantins, por exemplo, o Cerrado representa 91% e a Amazônia, 9% de seus quase 28 milhões de hectares. Ao optar pela metodologia do ART Trees, o Estado precisa apresentar como se deu o desmatamento em cada um desses biomas, nos últimos cinco anos e, então, quanto isso representa em emissão de CO2. 

Com as plataformas de monitoramento, são feitos os cálculos do desmatamento esperado e que deixou de ocorrer – o que leva à geração dos créditos, explica Fiori. “Por exemplo, supondo que uma jurisdição emitiu 10% a menos de CO2 do que era esperado, é esse delta que permitirá a geração de crédito [a cada tonelada evitada].”

Os créditos jurisdicionais têm uma metodologia considerada conservadora e descontos, como o de seguro, embutidos na conta. Isso significa que, ao fim, deve haver menos créditos disponíveis para comercialização. 

Ao criar seu sistema jurisdicional, o Estado também estabelece um arcabouço regulatório que exige que os projetos sejam comunicados a ele. Dessa forma, a certificadora é notificada e deduz do cálculo áreas que não pertencem à jurisdição, evitando a dupla contagem, diz Fiori.

Acordo público-privado

Os R$ 14 milhões da Mercuria ao Tocantins foram utilizados na otimização do combate a incêndios durante a temporada de queimadas e na construção de uma sala de monitoramento, com sistema automatizado, de acordo com o executivo. O Estado também promoveu o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e o Programa de Regularização Ambiental (PRA).

“OOs projetos de carbono têm despertado o compromisso do governo para que façam um esforço ainda maior com o recurso disponível para reduzir as emissões.”

Para Fiori, não há mágica: o incentivo financeiro para gerar créditos vai contribuir para o aprimoramento das políticas públicas e envolvimento das comunidades para garantir a redução das emissões de CO2. 

“O crédito jurisdicional tem esse risco: você precisa que o Estado performe na redução de emissões, e estamos contando com isso”, diz. 

Os recursos funcionam como um pagamento adiantado, uma vez que, em troca, a companhia garantiu a compra de dez “safras” de créditos de carbono – aqueles emitidos em relação ao período de 2020 a 2030. O valor do investimento será abatido e, depois, a Mercuria deve efetivar a compra dos demais ativos.

O retorno

Como trader, a empresa quer ganhar com a comercialização desses créditos de carbono. 

Só no mercado voluntário, a empresa transaciona de 20 milhões a 30 milhões de créditos de carbono por ano. “Esse volume caiu recentemente, já que o mercado está frio, mas entendemos que este é um momento de transição. O mercado está amadurecendo e esperamos que essa crise seja superada, e que a liquidez e a demanda voltem”, diz Fiori. “Essa demanda vai ser para um produto específico que estamos entendendo ainda qual é, mas não é o REDD tradicional.”

A Mercuria também atua no mercado regulado da Europa e no de combustível de baixo carbono da Califórnia, por exemplo, e tem mesas de trading em Houston, no Texas, Londres, Genebra e Xangai.

Por meio do Silvania, a companhia também está negociando outros projetos para a geração de créditos jurisdicionais e de restauração. 

*Foto: Marcio Di Pietro/Secom Tocantins