Cali, Colômbia – Com a promessa de ser a “COP da implementação” do histórico ‘Acordo de Paris da Natureza’, firmado há dois anos, a 16ª Conferência das Nações Unidas sobre biodiversidade chega à reta final com grandes chances de entregar um resultado decepcionante.
A questão principal é o dinheiro. Para cumprir os objetivos do Marco Global da Biodiversidade, que incluem aumentar as áreas protegidas no mundo todo e interromper a perda de recursos biológicos que vem se acelerando, é necessário resolver o nó do financiamento.
O Brasil, dono da maior diversidade biológica do planeta, encabeça junto com os anfitriões colombianos a demanda por um plano claro que garanta o fluxo de dinheiro para os países que detêm a maior parte da natureza que precisa de proteção.
Há dois anos, na COP15 de Montreal, os 196 países signatários da Convenção de Diversidade Biológica (CDB) se comprometeram a adotar medidas práticas para parar e reverter a perda da natureza, incluindo a proteção de 30% de suas áreas terrestres e marinhas até 2030.
Em Cali, a missão era responder: como e com que dinheiro?
Um número dá a ideia da dificuldade de chegar a uma cifra de consenso. Os países ricos se comprometeram a colocar US$ 20 bilhões anuais num fundo global da biodiversidade. Por enquanto, com as doações feitas durante esta semana, o total não passou de 2%.
Outros dois temas ligados a financiamento são prioritários: o pagamento pelo uso de ativos biológicos sequenciados digitalmente e o repasse para populações indígenas e comunidades tradicionais que estão na ponta.
A discussão simultânea de três veículos financeiros se mistura com uma demanda antiga do Brasil: os instrumentos multilaterais precisam ser reformados para dar maior poder de decisão às economias em desenvolvimento. Para os negociadores brasileiros, esta é a oportunidade ideal para um redesenho.
Mas a distância entre as partes provou ser grande demais. David Ainsworth, porta-voz da conferência, afirmou que as conversas continuarão nas sessões técnicas que acontecem entre as COPs.
Uma resolução, no melhor dos cenários, só acontecerá daqui dois anos, na COP17, que acontecerá na Armênia.
Ainda assim, os delegados devem continuar trabalhando na Colômbia para tentar encaminhar. Uma pessoa que participa ativamente das discussões afirmou ao Reset que o trabalho entra fim de semana adentro.
“Algumas delegações já disseram que mudaram suas passagens para vários dias depois de 1º de novembro, ajustaram seus protocolos de segurança, estão enviando parte de sua equipe ao país de origem e deixando os principais negociadores”, disse ela.
A conta
Na construção do Marco Global, chegou-se à estimativa de que seriam necessários ao menos US$ 700 bilhões por ano até 2030 para interromper a perda da biodiversidade e iniciar um processo de regeneração.
A maior parte desse valor, US$ 500 bilhões, viria do fim de subsídios a atividades que provocam impactos negativos na natureza. Hoje, o mundo direciona US$ 2,6 trilhões em subsídios para desmatamento, poluição de águas e consumo de combustíveis fósseis, de acordo com análise mais recente da organização Earth Track.
Este tema é um dos mais espinhosos, pois envolve assuntos delicados domesticamente: subvenções a agricultores para produção de alimentos, ou políticas de controle de preço dos combustíveis.
O assunto mal foi discutido durante a conferência e também deve ficar para a COP17.
Os outros US$ 200 bilhões, por outro lado, estão sendo exaustivamente debatidos. Os países ricos concordaram, na COP15, em mobilizar para as economias em desenvolvimento ao menos US$ 20 bilhões anuais a partir de 2025 e aumentar esse valor para US$ 30 bilhões a partir de 2030.
“Nossa compreensão é de que o financiamento está totalmente aquém daquilo que foi o compromisso assumido”, disse a ministra do Meio Ambiente do Brasil, Marina Silva, em coletiva de imprensa.
No início da semana, os governos da Áustria, Dinamarca, França, Alemanha, Nova Zelândia, Noruega, Reino Unido e da Província canadense de Québec se uniram e prometeram US$ 163 milhões para o atual fundo global para biodiversidade, elevando a cifra para US$ 407 milhões.
Presidente da COP16, a Colômbia reforçou a necessidade de colocar todas as opções de financiamento sobre a mesa. “A proposta apresentada pelo país-anfitrião coloca o foco da discussão na captação e, basicamente, diz: vamos começar a fazer o dinheiro fluir, porque estamos atrasados”, diz Patricia Zurita, diretora estratégica global da ONG Conservation International.
Quem cuida do dinheiro?
Uma das principais demandas do Brasil é a criação de um novo fundo para gerir os recursos para a biodiversidade. A proposta enfrenta grande resistência de países doadores do Fundo Global para Biodiversidade (GBFF, na sigla em inglês), criado logo após o Marco Global.
O veículo faz parte do Fundo Global para o Meio Ambiente (GEF, na sigla em inglês), sob o guarda-chuva do Banco Mundial, e segue suas regras.
Apesar de sua importância para o desenvolvimento de projetos em várias áreas, “o GEF é um mecanismo complexo, burocrático, às vezes pouco transparente”, afirma Karen Oliveira, diretora de políticas públicas da The Nature Conservancy no Brasil.
Outro fator é a baixa representatividade de países megadiversos: o Brasil, por exemplo, divide a cadeira com a Colômbia e o Equador a cada decisão de voto. “Há blocos em que 16 países africanos contam por um voto, em outros, países em desenvolvimento ficam no mesmo bloco que países desenvolvidos, e também contam por um voto”, disse a ministra.
O pedido do Brasil, já feito publicamente pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, é para que haja uma reforma mais ampla dos mecanismos multilaterais e “não fique com uma hegemonia sobrecarregada dos doadores, porque os beneficiários precisam ter igual peso”, afirmou Silva.
Na noite de ontem, a discussão sobre criar ou não um novo fundo passou para o nível ministerial, e é difícil sequer especular a decisão, diz uma fonte próxima às negociações. “Os detalhes operacionais do fundo terão que, de todo modo, ser negociados daqui a dois anos, na próxima COP”, complementa.
Lucros sobre ‘DNA da natureza’
O tema mais complexo da COP16, indiscutivelmente, é o repasse de parte dos recursos obtidos através do uso de Informações de Sequências Digitais (DSI, na sigla em inglês).
Se antes o desenvolvimento de inovações a partir de recursos genéticos exigia ter em mãos o produto físico, com o DSI, as empresas passaram a poder usar as informações digitais. O Reset explicou com mais detalhes nesta reportagem.
Esse novo modo de fazer ciência não estava previsto no Protocolo de Nagoia e, na prática, permitiu que setores trilionários, como a indústria farmacêutica, se beneficiassem da biodiversidade existente em outros países e de conhecimentos antigos de populações tradicionais sem remunerá-las de forma devida.
“O uso de DSI consiste em todo um modo de pensar diferente. Não se trata só de novas leis ou novas regras, é uma nova forma de pensar. É isso que está em jogo”, disse Gustavo Pacheco, diplomata chefe da delegação brasileira ao Reset, antes do início das negociações.
A expectativa do negociador, que se mostrou realidade, era de que a definição de quais seriam os disparadores para o pagamento pelo uso de DSI fosse a parte mais complicada de toda a negociação. “O que espero é que tenhamos ao menos um acordo sobre alguns elementos mínimos de um mecanismo multilateral.”
Esse mecanismo, na prática, deve funcionar como um fundo alimentado por recursos privados, que devem ser repassados a países com economias em desenvolvimento. Aqui, também, o Brasil defende que esse veículo funcione fora do ambiente do GEF.
A arquitetura do GEF não comporta a entrada de recursos que virão pelo pagamento de DSI, disse a ministra. “Não é doação, é um pagamento legítimo, como se eu tivesse adquirido um celular, com a diferença de que o pagamento é pelos conhecimentos e pelos recursos [genéticos], com destino para a preservação.”
As indefinições estão se essa “taxa” a ser paga pelos países levará em conta critérios por setor, se o pagamento será sobre o lucro ou a receita, se entrará o balanço global da companhia ou apenas os produtos que usam DSI para inovação e, até mesmo, sobre a definição dos tamanhos das empresas e suas respectivas contribuições.
A equipe diplomática do Brasil apresentou na noite de quarta-feira, 30, uma nova proposta que tenta combinar opções que foram sugeridas em reunião anterior à COP16, e tragam opções para as empresas pagantes. Ao mesmo tempo, o país valoriza a legislação local que já traz regras para a repartição de benefícios.
Na outra ponta da discussão, a União Europeia questionou a valorização dos fundos nacionais e Japão e Suíça, que possuem fortes indústrias farmacêuticas, insistem que o texto final traga a sugestão, não obrigação, para que companhias contribuam com o mecanismo.
Pacheco frisou, na entrevista, que a discussão sobre DSI não existe por conta da mobilização de recursos para o cumprimento do Marco Global.
“O fundo não vem para resolver os problemas do financiamento da biodiversidade e não se trata disso. A origem desse debate é o fato de que tem o terceiro objetivo da CDB, que é a distribuição justa e equitativa dos benefícios advindos do uso econômico dos recursos genéticos. Nós precisamos implementar esse objetivo”, reforçou o diplomata.
Em meio às reuniões bilaterais atrás de portas fechadas e negociações de diplomatas noite adentro, ainda não há clareza sobre quais serão os resultados da COP da Colômbia ao fim do dia – nem se ela se encerrará ainda hoje, como previsto.
“O que vimos na COP16 é um nível realmente alto de desconfiança entre países em desenvolvimento e desenvolvidos. Os mesmos problemas também estão paralisando as negociações climáticas” diz Oscar Soria, CEO da The Common Initiative, think thank de biodiversidade e nova economia.