Como incêndios catastróficos mudaram o olhar de Portugal sobre a gestão do fogo

País criou uma agência nacional para planejar e coordenar a prevenção e o combate ao fogo, depois de um incêndio de enorme proporções causar 119 mortes

Floresta queimada em Portugal
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Os incêndios em vegetação são um problema ao redor do mundo. Além da crise no Brasil, os vizinhos Bolívia, Peru, Argentina e Paraguai também enfrentam o fogo descontrolado.

No fim do verão do Hemisfério Norte, os Estados Unidos, Espanha e Portugal lidam com mais uma temporada de combate às chamas.

Em meio ao fogo descontrolado na Amazônia, no Cerrado e no Pantanal e o período de extrema seca pelo país, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva retomou a promessa de campanha de criar uma Autoridade Climática. Ainda pouco se sabe sobre o funcionamento exato dessa nova estrutura, mas uma das premissas é que ela teria o papel de coordenar esforços de preparação e prevenção para lidar com eventos de impacto ambiental e climático – como é o caso das queimadas. 

Também na busca por uma ação integrada, Portugal conta há cinco anos com uma agência governamental cuja função principal é lidar com um dos principais desafios do país: os incêndios em áreas rurais e florestais.

Em 2017, o país enfrentou incêndios severos, que culminaram na morte de 119 pessoas, entre civis e combatentes, e mais de 500 mil hectares queimados. Os prejuízos ficaram na casa de US$ 1,2 bilhão de dólares, segundo estudo da seguradora Aon. 

“Foi um incêndio de comportamento extremo como ainda não tínhamos visto na Europa”, diz Antonio Salgueiro, coordenador de melhorias de processos da Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais (Agif). “Temos várias entidades com responsabilidades divididas para prevenção, fiscalização, sensibilização e combate. A Agif foi criada exatamente para promover a integração entre esses organismos”. 

No Brasil, não existe uma visão global para lidar com esse tipo de problema. Oscar Bambini, co-fundador e diretor de inovação da Um Grau e Meio, uma startup especializada em lidar com incêndios florestais, afirma que o país deveria ser inspirar no exemplo português.

“Eles [a agência] são catalisadores e fazem com que as várias pontas avancem na direção certa, com articulação dos atores do fogo, ministérios, sociedade civil, academia e ciência”. 

Antecipação

Sem bala de prata para resolver um problema de tamanha complexidade, a Agif não tem a pretensão de ser a resposta para os incêndios nem de interceder diretamente em sua ocorrência, afirma Salgueiro. O ponto central é visualizar toda a cadeia de valor de quem está diretamente ligado ao fogo e contar com papéis definidos de atuação.

“Em 2017, o país não olhou para o problema como um assunto para os bombeiros, para a proteção”, mas reconheceu que o contexto e os investimentos tinham que ser alterados, disse o presidente da Agif, Tiago Oliveira, em entrevista ao jornal português Público.

Foi pensando na implementação de uma governança para a gestão do fogo e de esforços colaborativos entre agentes que surgiu a Agif.

O papel da agência é principalmente de antecipação, no compartilhamento de informações e na comunicação a ser feita entre governo, diferentes órgãos e a população sobre os incêndios. 

A Agif concentra em uma plataforma dados em tempo real sobre topografia, vegetação seca (o combustível para propagação do fogo) e intervenções já feitas – como a aplicação controlada do fogo –, por exemplo. 

“Houve acima de tudo uma economia de esforços”, diz Salgueiro. “E a forma de olharmos e pensarmos o território, com planejamento e discussão, também está mudando.”

A agência nasceu sob a alçada do então primeiro-ministro, António Costa, o que facilitou a conversa com os diversos ministérios e o alinhamento do orçamento.  Luís Montenegro, que assumiu o cargo em abril deste ano, a Agif foi alocada no Ministério da Agricultura. 

Mas e o impacto?

Os dados da Agif mostram que, até o ano passado, Portugal havia conseguido manter uma melhora constante na gestão do fogo em relação à catástrofe de 2017. 

Depois das dezenas de mortes, foram registradas 13 vidas perdidas no ano seguinte e uma redução gradual até o ano passado, quando o país conseguiu zerar as vítimas mortais por conta dos incêndios rurais. 

A área queimada também diminuiu: foram 34,5 mil hectares perdidos em 2023, uma área 66% menor que a média de 54,4 mil hectares dos quatro anos anteriores. O relatório mais recente mostra que houve a redução da probabilidade de incêndios, evitaram-se desastres e diferentes atores ganharam tempo na luta contra o fogo. 

Os investimentos também acompanharam o processo: de 2018 a 2023, o governo investiu € 2,5 bilhões na gestão integrada do fogo – o valor triplicou em comparação a 2017. Isso representou nove vezes mais dinheiro em prevenção e o dobro investido nas atividades de combate. 

No ano passado, porém, o orçamento caiu para 483 milhões de euros, 9% a menos que em 2022.

Apesar dos avanços robustos, o país ainda não se encontra “protegido de incêndios rurais graves”, como prevê o plano aprovado para 2030, pontua a agência. E, no ritmo atual de adoção das estratégias então definidas, essa meta não deve ser atingida a tempo. 

A mudança do clima

Portugal registrava ao longo deste ano a menor área queimada da última década, mas a situação pode se inverter até o fim da temporada de incêndios. O Centro e o Norte portugueses são as áreas mais afetadas, e o governo aguarda ajuda de outros países da União Europeia. Até o momento,  os incêndios provocaram sete mortes, incluindo a de um brasileiro. 

No meio do ano, Oliveira já havia dito em entrevista que havia mais vegetação-combustível do que gostariam para a temporada de incêndios. 

Uma vez que o fogo começa, a Agif indica as estratégias prioritárias. “Por exemplo, se deve ser privilegiado o combate direto, na retaguarda ou nos flancos, se deve haver intervenções diretas ou indiretas. Se temos ou não a capacidade de combater aquele fogo”, exemplifica Salgueiro.

As condições têm sido cada vez mais extremas no país, afirma o coordenador. “Os índices de comportamento de fogo que estamos tendo hoje na região do Porto, do Viseu e do Aveiro, não víamos nessa magnitude desde 2021.”

Como acontece ao redor do globo, a imprevisibilidade do clima também tem se intensificado, o que exige que os agentes estejam preparados o ano todo e a prevenção e melhorias sejam contínuas. 

“Nosso clima é mediterrâneo, então o verão sempre foi quente e seco. O problema é que agora pode ser extremamente seco, e lidamos com excessos de precipitação em um mês e depois nenhuma gota d’água no outro”. 

No mês passado, representantes da Agif visitaram o Brasil, em uma colaboração com o Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (PrevFogo), do Ibama.