Conhecido como ‘caixa d’água’ e ‘coração das águas’ do Brasil, o Cerrado foi o bioma brasileiro com a maior área queimada em agosto deste ano. Por abrigar as nascentes de 8 das 12 bacias hidrográficas que abastecem o país de água, o fogo traz riscos à segurança hídrica, energética, alimentar e à biodiversidade do país.
Foram 2,5 milhões de hectares varridos pelo fogo no Cerrado em agosto, extensão 177% maior que no mesmo período de 2023 e equivalente a 60% de toda a área queimada do bioma desde janeiro (4 milhões de hectares) – o segundo mais afetado pelas queimadas no país em 2024, atrás da Amazônia. Os dados são do Monitor do Fogo, do MapBiomas.
“Agosto trouxe um cenário alarmante para o Cerrado, com um aumento expressivo da área queimada, a maior nos últimos seis anos”, diz em nota Vera Arruda, coordenadora técnica do Monitor do Fogo e pesquisadora no Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam).
O Cerrado é fundamental para o funcionamento do Brasil, pois ao abrigar as principais nascentes de água afeta diversos setores: abastecimento de água para a população, hidrelétricas, agricultura e pecuária, navegação e turismo.
Segundo maior bioma do país, presente em 25% do território nacional, abriga 30% da fauna brasileira (equivalente a 5% da fauna mundial), com aproximadamente 320 mil espécies animais, e mais de 10 mil espécies de plantas, das quais 914 espécies endêmicas, que ocorrem somente no cerrado brasileiro. Por isso, o bioma é considerado um ‘hotspot’ global de biodiversidade.
“Há por parte da sociedade uma falta de entendimento do papel super importante do Cerrado para o país”, diz Samuel Barreto, gerente nacional de água e sistemas alimentares da The Nature Conservancy (TNC) Brasil.
‘Caixa d’água’
Por estar na região central do país, o Cerrado conecta todos os outros biomas, exceto os Pampas, e distribui água para todos eles. Com a geografia marcada por planaltos, o bioma abriga nascentes e importantes áreas de recarga hídrica.
Das 12 bacias hidrográficas do país, oito têm nascentes no bioma, sendo responsável por 71% da produção hídrica da bacia do Araguaia/Tocantins, 94% do São Francisco e 71% do Paraná/Paraguai.
É no Cerrado também onde estão as nascentes dos rios que formam o Pantanal e três grandes aquíferos: Guarani, Bambuí e Urucuia.
As queimadas desencadeiam impactos em cascata em redes fluviais. Primeiro, diminuem a capacidade de infiltração de água da chuva no solo e, consequentemente, a recarga de águas subterrâneas.
Com menos cobertura vegetal, a água chega com mais força no solo e escorre superficialmente. Essa redução de infiltração pode variar de 30% a até mais de 60%, segundo Yuri Salmona, diretor-executivo do Instituto Cerrados.
Além disso, a supressão da vegetação pelo fogo causa a diminuição da evapotranspiração das plantas e, com isso, a quantidade de água na atmosfera que vai se transformar em chuva. Além de aumentar a temperatura e os gases no ar.
“Estamos numa rota de crise sistêmica hídrica e energética por conta da escassez de água. Os rios do Cerrado já perderam mais de 15% da sua vazão, a projeção é perder entre 30% a 40% entre os anos de 2040 e 2050”, afirma o diretor do Instituto Cerrados.
Salmona lista a dependência do Brasil das águas que nascem no bioma: 90% dos brasileiros consome alguma energia que vem das águas do bioma; o Cerrado abastece de água cerca de 40% da população; 80% da área irrigada do país está na região.
O abastecimento hídrico do Cerrado também tem sido afetado pelas mudanças no clima e no padrão de chuvas cada vez mais imprevisível. A área de superfície de água natural no Cerrado registrada em 2023 era 53% menor do que a observada em 1985.
Hoje, o bioma possui 1,6 milhão de hectares cobertos por água, maior valor registrado em 39 anos, mas apenas 37% estão em áreas naturais, enquanto 51% estão em áreas de hidrelétricas, ou seja, em reservatórios.
“Ou seja, um cenário de diminuição ainda maior da disponibilidade hídrica é extremamente preocupante, pois impacta nosso modo de vida, produção, consumo, ocupação do uso do solo”, afirma Salmona.
Em chamas
O fogo é parte do sistema natural do Cerrado, com tipos de vegetação que evoluíram para lidar com queimadas. Mas o regime natural do fogo tem sido alterado pelas secas e temperaturas extremas, aumentando o risco de propagação dos incêndios florestais.
“O Cerrado apresenta uma variedade de dinâmicas de fogo em seus dois milhões de km². No entanto, mudanças nos padrões históricos de fogo e a crescente ocorrência de incêndios florestais danificam gravemente o bioma e colocam em risco seu ecossistema”, diz o estudo ‘Mudanças climáticas e fogo: o caso do Cerrado, a savana brasileira’.
Segundo dados da MapBiomas, o fogo queimou 88 milhões de hectares de Cerrado entre 1985 e 2023, uma média de 9,5 milhões de hectares por ano – a Amazônia queimou 7,1 milhões de hectares anualmente no período. A área queimada equivale a 43% de toda a extensão do Cerrado e é maior que os territórios de países como Chile e Turquia.
“É um conjunto de fatores que faz com que esse incêndio se torne mais intenso: mudança do uso do solo, desmatamento, mudança no padrão de precipitação, seca e fogo criminoso”, afirma Barreto, da TNC Brasil.
O Cerrado teve quase metade de sua área alterada por atividades humanas, de acordo com o levantamento do MapBiomas. Nos últimos 40 anos foram desmatados 38 milhões de hectares, o que levou 27% da vegetação original do bioma.
“As consequências dessas transformações têm causado danos ambientais incalculáveis, como invasão de espécies exóticas, erosão do solo, poluição de aquíferos e alterações nos regimes de fogo, que afetam diretamente as mudanças no clima regional”, diz um artigo sobre a ação dos incêndios no bioma.
E o ritmo vem crescendo. O Cerrado é hoje o bioma mais rapidamente devastado do país: em 2023, perdeu mais de 1 milhão de hectares de vegetação nativa para o desmatamento, um aumento de 68% em relação ao ano anterior. Para se ter dimensão, o número representa uma área do tamanho de dois Distritos Federais.
Foi a primeira vez desde o início da publicação do Relatório Anual do Desmatamento no Brasil (RAD), do MapBiomas, que a área desmatada de Cerrado, em um ano, foi maior que a área desmatada na Amazônia.
As consequências da ação humana começam a ser quantificadas. Estudo recentemente publicado na revista científica Global Change Biology mostra que a conversão de áreas nativas do Cerrado para pastagens e agricultura tornou o clima na região quase 1°C mais quente e 10% mais seco.
Impactos e caminhos
“Todos os setores da economia são fortemente impactados pela redução da água, mas eu destacaria o agropecuário: a irrigação da agricultura consome mais de 50% da água do país, e justamente no período de seca”, diz o diretor do Instituto Cerrados.
Hoje, 26 milhões de hectares do bioma são ocupados pela agricultura, sendo 75% destinados ao cultivo de soja – metade da área cultivada do grão no país está nesse bioma.
Cerca de 55% da vegetação nativa restante do Cerrado se encontra em áreas com Cadastro Ambiental Rural (CAR) autodeclarado. O Código Florestal Brasileiro prevê que propriedades rurais no bioma mantenham ao menos 20% de sua área com vegetação nativa, a chamada Reserva Legal. O que excede esse percentual pode ser legalmente desmatado.
“É uma área muito grande com a possibilidade de desmatamento legal, estamos falando de uma área equivalente a quase três vezes a meta brasileira de NDC [compromisso de redução de emissões de gases de efeito estufa] em termos de restauração ecológica”, diz Barreto, na TNC Brasil.
Criar critérios mais rigorosos, que levem em consideração a capacidade de abastecimento hídrico, para determinar a área que pode ser desmatada, é um dos caminhos para preservar o bioma, na avaliação do diretor do Instituto Cerrados. Ele lembra que 22 milhões de hectares do Cerrado são áreas degradadas ou subutilizadas, que poderiam ser melhor utilizadas e evitar o desmatamento.
Outro caminho apontado por Barreto são as soluções baseadas na natureza, como a restauração dos ecossistemas, a restauração florestal e ecológica. “Recuperar e restaurar o bioma é absolutamente fundamental. E essa equação ainda não está bem resolvida”, diz Barreto.
O manejo adequado do solo, com práticas agrícolas sustentáveis que permitam melhorar, ao mesmo tempo, a saúde do solo e a atividade produtiva da agricultura e da pecuária, ajudam na conservação do bioma. O gerente da TNC indica que isso pode ser feito por meio do pagamento pelo serviço ambiental, mecanismo que cria incentivo para o proprietário rural recuperar a sua área.
“Para o Cerrado não existe bala de prata”, afirma Salmona. “É necessário proteger, monitorar, responsabilizar e restaurar.”