Tristeza e medo tomaram conta das escolas. Como os livros podem ajudar

Onda de ataques no Brasil mostra urgência de conversas sobre raiva, solidão e acolhimento às emoções consideradas menos nobres

Tristeza e medo tomaram conta das escolas. Como os livros podem ajudar
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Infelizmente a raiva, a tristeza e o medo foram os sentimentos que mais frequentaram as escolas e as vidas das famílias brasileiras nas últimas semanas. 

Desde 2011, foram 11 ataques com vítimas fatais a estabelecimentos de ensino em nove estados do país. Cinco deles aconteceram de setembro de 2022 para cá.

Longe de fazer propostas simples para problemas complexos, espero propor caminhos para conversas essenciais nas escolas, em casa, nas bibliotecas, nas livrarias, nos parques e onde quer que uma criança precise de carinho e de espaço para expor seus sentimentos.

É preciso que adultos e crianças encontrem uma maneira de lidar com o que esses fatos provocam. 

É preciso falar sobre a raiva, sobre a tristeza e sobre o medo. Falar sobre suas diversas intensidades e também sobre suas variadas formas de manifestação. 

É normal sentir emoções que não estão na lista das mais nobres – o que fazemos com elas é que pode não ser normal nem aceitável. E talvez esteja aí uma das inúmeras pontas de um enorme novelo que levou aos ataques recentes.

A tristeza e o medo podem ainda arrastar pela mão a solidão. E nessa onda, se não houver muita atenção de pais, professores e cuidadores, aparecem os riscos à saúde mental.

A literatura infantil é um oceano sem fim para ajudar a pensar sobre esses temas. As histórias provocam identificação com os personagens, despertam solidariedade e conseguem transmitir experiências que as crianças (e muitas vezes os adultos) ainda não conseguem explicar com suas próprias palavras. Apresentam alternativas e ideias para que cada um encontre seu lugar no mundo.

Acima de tudo, são capazes de plantar uma semente de esperança em fases mais difíceis da vida. Afinal, desistir não é uma opção.

A Raiva

José Carlos Lollo e Blandina Franco (Pequena Zahar, 2014)

Esse livro conta a história de algo que nasce pequenininho, que a gente finge que não é importante e que, num primeiro momento, não sabe nem nomear. Porém, deixar de olhar para ele e de cuidar dele pode ser perigoso. Ele se alimenta de qualquer coisa, por impulso ou por hábito, e vai crescendo até se transformar num monstro enorme. 

A obra é um alerta de autoconhecimento para adultos e crianças. Fala dessa emoção difícil e muitas vezes tratada como um tabu. E o que acontece quando a raiva não cabe mais dentro da gente? O final traz uma oportunidade enorme de conversar sobre o impacto do nosso comportamento em quem nos rodeia.

O casal de autores foi vencedor do Prêmio Jabuti em 2014 e 2015. Recebeu menção honrosa no Prêmio Bologna Ragazzi Digital Award em 2012. Alguns de seus livros estão entre os melhores do ano escolhidos pela revista Crescer, em diferentes edições. 

Consegue ouvir meu coração?

Jo A-Ra (Editora Caixote, 2022)

Neste livro sem palavras, o barulho e a música disputam a atenção do leitor e o espaço das páginas o tempo todo. Um show de ilustração e de composição gráfica consegue transmitir, sem uma palavrinha sequer, o que sente um menino em relação a uma situação difícil vivida na escola e como ele elabora sua experiência tanto dentro quanto fora dela. Rende uma experiência de leitura compartilhada riquíssima, na qual as palavras vão brotar só do lado de quem vira as páginas.

A Árvore Vermelha

Shaun Tan (SM, 2009*)

Shaun Tan é um artista australiano muito premiado e começou sua carreira ilustrando histórias de terror e de ficção científica, características presentes em “A Árvore Vermelha”, agora com um toque de surrealismo e uma presença forte de elementos oníricos. 

São as imagens que vão dando sentido às frases e, principalmente, a sentimentos difíceis de traduzir, como a angústia e a solidão, e às dificuldades para superar determinados acontecimentos. 

A leitura da obra exige que se demore em cada uma de suas páginas para mergulhar nos detalhes das imagens e nas sensações que elas provocam. Elas propõem um diálogo entre as crianças e o mediador da leitura que pode ser surpreendente.

O início e o corpo do livro são pesados e deprimentes apenas para um leitor pouco atento. O final lembra, porém, que a esperança sempre esteve presente, mesmo que seja difícil de enxergar, quando tudo parece ir muito mal. 

Eu fico em silêncio

David Ouimet (Companhia das Letras, 2021)

Destaco duas das inúmeras interpretações possíveis para essa obra e os espaços que ela abre para conversas importantes entre pais e filhos, pais e professores, professores e crianças, etc. A primeira é sobre sentir-se deslocado no mundo: a dificuldade de identificação com um ou mais grupos ou indivíduos pode ser muito solitária e muito dolorida. Automaticamente fica tudo muito barulhento, sem sentido, que é como a personagem dessa história vê o mundo. 

A boa notícia é que no mundo há lugar para todos, basta encontrar a sua turma, mesmo que ela esteja nos livros – que é onde essa garota vai se sentir bem, mesmo que em silêncio. A segunda é que a introspecção, característica muitas vezes temida, outras tantas desvalorizada, pode ser muito poderosa e permitir ao indivíduo chegar a mundos ainda invisíveis aos extrovertidos e turbulentos.

Neste, que é seu primeiro livro, o autor norte-americano, que também é músico, usou recursos como ritmo, harmonia e métrica para compor um álbum com ilustrações grandiosas e incômodas. Os cenários têm excesso de informação para que o leitor de fato fique desnorteado com tanto ruído. E, por fim, encontre alento no silêncio final.

Por que choramos?

Fran Pintadera e Ana Sender (WMF Martins Fontes, 2021)

A dupla espanhola produziu um álbum poético e cheio de metáforas sensíveis sobre os poderes das lágrimas. Mais que uma demonstração de sentimentos, elas podem ser curativas. Tanto para quem sofreu algum trauma, como para quem presenciou ou sentiu que agiu de maneira inapropriada. Servem também para quem está perdido ou sozinho, mas sobretudo porque ajudam a crescer.

Ninguém vai ficar bravo?

Toon Tellegen (WMF Martins Fontes, 2015)

Esse livro está dividido em doze capítulos de pequenas histórias sobre a raiva, protagonizadas por animais. De maneira poética, filosófica e também cheia de graça, o autor holandês, que era médico antes de começar a escrever, procura abarcar as diferentes manifestações dessa emoção, procurando diferenciá-la do ódio. Procura mostrar também que para se acalmar, criar conexões, crescer e até rir, é preciso senti-la e colocá-la para fora. 

O Menino que virou chuva

Yuri de Francco e Renato Moriconi (Editora Caixote, 2020)

Para viver integralmente a experiência do menino que chove de tanto chorar, o leitor precisa participar. Isso porque ele é um flip book (folioscópio), aquele livro que é folheado rapidamente com o polegar, se transformando em um desenho animado. 

Por meio dessa técnica criada no século XIX e usada para animações 2D ainda hoje, esse livro ilustrado híbrido faz o leitor viver, com muito movimento, a sensação de chegada de uma tempestade e, ao final, a calmaria. Os pequenos terminam a obra, literalmente, no meio de um abraço. Puro afeto.

O livro foi finalista do Prêmio Jabuti em 2021, na categoria infantil, está na seleção dos 30 Melhores Livros de 2020 da revista Crescer e tem o selo altamente recomendável da FNLIJ.

Mundo Cruel

Ellen Duthie e Daniela Martagón (Boitempo Editorial, 2017)

Para finalizar a coluna de hoje, me permito uma ousadia. “Mundo Cruel” é metade livro, metade jogo. Por meio de 20 cartões ilustrados, com perguntas provocadoras no verso, propõe reflexões sobre a crueldade no cotidiano e como cada um se relaciona com ela. 

Parte da série Filosofia Visual para Crianças, o material aborda questões éticas ligadas à empatia, à responsabilidade e às emoções. Além das situações propostas nos cartões ilustrados, traz também cartões em branco para que as crianças proponham suas próprias histórias e redijam perguntas, permitindo que elaborem pensamento crítico de forma independente. Uma lista com propostas de atividades e ideias de como trabalhar com o livro, em casa ou na escola, faz parte do pacote.

* A SM Editora não vende suas obras para pessoas físicas por meio de sua página na internet. Por isso, para comprar A Árvore Vermelha sugiro uma livraria on line independente, de pequeno porte, especializada em literatura infantil, cujo trabalho tem um impacto importante para as famílias que nela trabalham e de cujas empresas é parceira.

P.S.: Neste mês de abril, o ministro da Fazenda Fernando Haddad escorregou nas palavras ao afirmar que compra livros na Amazon todos os dias. O mercado livreiro reagiu. Entre piadas e convites para que o ministro começasse a frequentar livrarias de rua, lembrou de forma séria e contundente o papel dele e dos consumidores brasileiros de fazer escolhas conscientes. A prioridade deve ser comprar livro de quem ganha dinheiro apenas com livros, tem acervo, recomenda melhor que o algoritmo e promove a cultura, por meio de debates, apresentações de autores etc., ao invés de ser apenas um intermediário logístico de vendas com impacto nocivo para o mercado.