Uma nova lei sancionada neste mês torna obrigatória a equiparação salarial entre homens e mulheres. Como ela vai funcionar na prática?
O texto está longe de ser o primeiro a tratar do tema. A própria CLT prevê desde a Era Vargas que não pode haver discriminação de remuneração por características como gênero e raça. O que muda agora é como o Estado vai atuar e punir tais ocorrências.
No entendimento de especialistas, são três os pontos de destaque. O primeiro diz respeito à avaliação da diferença salarial. A lei determina a publicação semestral de relatórios de transparência de salários e critérios remuneratórios para companhias com mais de 100 funcionários.
“As empresas vão ter que aprender a identificar os critérios que usam para remuneração”, afirma Manuela Leite, advogada especializada na área trabalhista do escritório Chiode Minicucci.
Caso haja comprovação de discriminação salarial, a nova legislação prevê aumento da multa, que passará a corresponder a dez vezes o novo salário devido ao funcionário discriminado. Em caso de reincidência, o valor dobra.
Até então, a multa equivalia a um salário-mínimo regional, elevada ao dobro no caso de reincidência.
Outra novidade é que a lei abre a possibilidade explícita de indenizações por danos morais. “Isso é novo, não constava com essas palavras na CLT”, diz Leite.
Mostrar para resolver
O breve texto, de apenas sete artigos e que ocupa pouco mais de uma página, ainda não traz muitos detalhes da implementação, o que deve vir num segundo momento, via normativas para regulamentação.
Mas já está prevista a divulgação de dados que permitam a comparação objetiva entre salários, remunerações e proporção de ocupação de homens e mulheres nos níveis hierárquicos de liderança (direção, gerência e chefia).
Informações que possam apontar outras desigualdades por raça, etnia, nacionalidade e idade também deverão ser publicadas. A empresa que não cumprir com a obrigação estará sujeita a uma multa no valor correspondente a até 3% da folha de salários do empregador, com limite em 100 salários mínimos.
Mesmo antes das normativas, as empresas precisam começar a se preparar para publicar seus relatórios neste semestre, diz Leite. “É importante começar a entender as progressões de carreira das mulheres lá dentro. Elas têm de se perguntar: por que não há mulheres na direção ou na gerência? Por que a promoção não ocorre?”
A lei brasileira se inspira em experiências internacionais, como a da União Europeia, aprovada em março deste ano, e deve contribuir para o avanço do tema. Os chamados ‘vieses inconscientes’ serão escancarados, afirma Angela Donaggio, fundadora da Virtuous Company e consultora em ESG, Ética e Diversidade.
“Não é que exista um grupo de homens mal intencionados unidos para pagar menos às mulheres”, diz Donaggio. “É que nós todos, homens e mulheres, temos vieses e valorizamos mais trabalhos masculinos ligados ao estereótipo masculino e menos os trabalhos ditos femininos”.
O incremento à legislação é um salto, mas não uma bala de prata, afirma a especialista. “Ela ataca uma parte problema, enquanto outras seguem descobertas. Se não, [a questão] já estaria resolvida em outros países com medidas semelhantes.”
O desafio das empresas
Na visão de Leite, do Chiode Minicucci, um dos desafios para as empresas brasileiras é a construção de um plano de cargos e salários bem desenhado. Multinacionais que já executam estratégia semelhante na Europa poderão importar a metodologia, identificar os critérios de remuneração e agir pelo fim das discrepâncias salariais.
“Empresas de capital aberto e com políticas de RH bem estruturadas não devem ter dificuldade para levantar as informações. O desafio maior deve ser para aquelas mais atrasadas em termos de gestão de pessoas”, avalia Ricardo Sales, CEO da consultoria Mais Diversidade.
Donaggio aponta uma boa prática que hoje é regra na legislação da Islândia. “As empresas usam uma calculadora que leva em consideração o nível de educação, responsabilidade no cargo, performance e senioridade, por exemplo. A partir disso, é gerada uma pontuação que serve como base comparativa.”
Neste exemplo, a calculadora auxilia na visualização dessas discrepâncias. Um homem e uma mulher marcam os mesmos 50 pontos na tabela, mas o salário do primeiro pode ser o dobro do da segunda.
O caminho ao topo
Dados do IBGE e de órgãos internacionais mostram que, na média, as mulheres ganham de um quarto a um terço a menos do que os homens. Mas a divulgação de informações prevista em lei deve trazer um retrato mais preciso da disparidade salarial entre gêneros.
A tendência é que essa diferença seja menos pronunciada. Uma pesquisa feita pela firma de recrutamento e consultoria de gestão Korn Ferry mostra que, na média global, homens recebem 16% a mais que mulheres.
No entanto, quando a comparação se dá em um mesmo nível hierárquico, a diferença diminui para 5,3%. Em uma mesma empresa, para 1,5%. Os dados levam em conta uma base de dados de 12 milhões de trabalhadores em 14 mil companhias, em mais de 50 países.
Mas um ponto que deve ficar mais em evidência é o quanto as mulheres têm mais dificuldade de chegar ao topo, aponta Leite.
“Quando trazemos a comparação nesse um pra um, talvez essa discrepância não seja tão grande quanto nessas médias. Mas se analisamos esses dados de uma forma mais ampla, percebemos que a discriminação ou o problema da discrepância salarial das mulheres está muito mais na na evolução de carreira.”