A mitologia grega conta a história de Cronos, o deus do tempo e da colheita, que devorava seus filhos temendo a profecia de que seria destronado por um deles.
Como Cronos, estamos numa encruzilhada: podemos escolher devorar nosso futuro ou, alternativamente, enfrentar a crise climática, agindo de forma decisiva e imediata.
Ainda que uma ampla gama de pessoas e organizações esteja trabalhando com convicção para viabilizar a segunda alternativa, todos nos perguntamos: vai dar tempo?
O tempo em que vivemos
O ano de 2023 evidencia claramente a instabilidade do clima já 1,1°C mais quente, tornando possível imaginar um futuro mais perigoso, caso ultrapassemos 1,5°C de aquecimento global.
Phoenix, no Arizona, registrou recentemente 19 dias consecutivos com temperaturas superiores a 43°C. Na Grécia, incêndios florestais devastaram edifícios e terras, forçando milhares a fugir. No Rio Grande do Sul, dois ciclones, em um período de 30 dias, devastaram cidades e causaram pelo menos R$ 400 milhões em prejuízos.
O tempo que encurta
O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) calculou que, partindo de 2020, a atmosfera poderia absorver cerca de 400 gigatoneladas (Gt) de CO2e para mantermos o aquecimento global abaixo de 1,5°C.
No ritmo atual, nosso “orçamento de carbono” se esgota em menos de seis anos, a partir de 22 de julho de 2023. Repito: desde o último sábado, temos menos de seis anos até que 1,5°C seja ultrapassado, mantida a taxa atual de emissões anuais.
O tempo que temos
É tarde. Então, o que fazer com o tempo que resta?
Não será possível (e nem desejável) simplesmente parar as emissões. Já tivemos uma experiência com isso durante a pandemia e sabemos que é insustentável – elas têm um rebote logo depois e voltam ainda mais fortes.
A estratégia precisa ser desacelerar e reverter o ritmo atual, em doses cavalares. Para isso, é necessário implementar dezenas de soluções climáticas simultaneamente, em diferentes setores e economias.
Na perspectiva de curto prazo, os “superemissores” precisam ser desbancados.
E quem são eles?
1 – Metano
As emissões de metano são responsáveis por cerca de um terço do aumento nas temperaturas globais observado nos últimos cem anos e aumentaram significativamente desde 2007, representando a maior ameaça para manter vivo o 1,5°C.
Um corte de 45% nestas emissões até 2030 pode, sozinho, evitar um aumento de temperatura de 0,3°C, segundo estudo do PNUMA. A Promessa Global de cortar 30% dessas emissões no mesmo período, da qual o Brasil é signatário, pode impactar em 0,2°C de aquecimento evitado.
Como realizá-lo? Lidar com os vazamentos na exploração, produção e transporte de combustíveis fósseis é a maneira mais rápida e barata de reduzir esse tipo de emissão.
A IEA estima que cerca de 70% das emissões de metano provenientes de operações de combustíveis fósseis podem ser reduzidas com tecnologias já existentes. No setor de petróleo e gás, a diminuição pode superar 75% com a implementação de medidas conhecidas, como programas de detecção e reparo de vazamentos.
2 – Desmatamento e degradação florestal
Conter as emissões oriundas das perdas de florestas tropicais, temperadas e boreais pode evitar um aumento de temperatura de 0,1°C. Aqui nós temos uma enorme responsabilidade – e oportunidade – de conter e reverter a degradação de biomas.
3 – Combustíveis fósseis
A dependência contínua de petróleo, gás e carvão como fontes primária global de energia representa um desafio crítico para a mitigação, tornando imperativo que busquemos transições urgentes para fontes limpas e modernas.
Para o médio e longo prazo, há sinais positivos. O setor energético já está passando por uma transformação histórica. O que está acontecendo é mais do que uma substituição de fontes energéticas e representa uma mudança de um sistema intensivo em emissões para um sistema que se mostra mais eficiente, tech-powered, barato e distribuído.
Os bons sinais vêm de um crescimento sem precedentes das energias renováveis. Em 2023, o mundo adicionará 440 GW de capacidade renovável, mais do que o dobro do previsto em 2020, segundo a Agência Internacional de Energia (IEA).
Isso significa 13% de renovável no total do mundo. Hoje, para cada dólar investido em combustíveis fósseis, U$1,7 é investido em energia limpa, totalizando mais de U$1,7 trilhão neste ano. Estima-se que poderemos saltar para mais de um terço de renováveis em 2030.
Assim como a Titanomaquia descreve uma batalha rápida e decisiva entre os titãs e os deuses, estamos em meio a uma rápida transição energética, como ocorreu com a transição do cavalo para o carro no passado. Por outro lado e enquanto isso, a indústria fóssil não pára: as novas explorações continuam formando “pipeline” de projetos e existe uma disputa política e econômica em torno de quem será o “last man standing”.
O tempo que nos devora
Mas, como Cronos, que relutou em deixar o poder, observamos políticos e lobistas freando a nossa transição rumo às zero emissões. E são diversos os exemplos de decisões que atrasam nossa jornada e encurtam o tempo disponível no relógio climático.
Algumas são claramente desalinhadas, como as decisões de permitir novas explorações de petróleo e gás em áreas ecologicamente sensíveis, como no Ártico e na foz do rio Amazonas. Como mencionei antes, há quem se orgulhe de desenhar políticas para garantir a posição de “last man standing” nessa indústria.
Outras são mais sutis. A Comissão Europeia, por exemplo, solicitou a aprovação de um objetivo global de renováveis. Apesar de ser um passo na direção certa, a ambição atual da UE está aquém do necessário para alinhar-se com os objetivos do Acordo de Paris.
E algumas decisões prejudicam a aceleração exponencial de tecnologias do nosso tempo. Aqui no Brasil, a contratação compulsória das termelétricas a gás natural, prevista na lei de privatização da Eletrobras, pode tirar a competitividade do hidrogênio verde brasileiro, segundo estudo feito pela PSR – Energy Consulting and Analytics.
O tempo de cada um
Os analistas de energia costumam argumentar que as transições são longas e lentas, baseando-se em modelos lineares. No entanto, a teoria da transição rápida sugere que o crescimento se dá em uma curva em S – onde um modelo convencional prevê uma participação de mercado de 5%, as tecnologias seguindo uma curva em S podem atingir na verdade 50%.
Foi assim em 2010, quando analistas previram que o mundo instalaria 12 GW de energia solar em 2020. Naquele ano, as instalações superaram 135 GW. Hoje, a energia solar atrai mais capital do que a produção de petróleo. Tende a ser assim com a mudança do carro com motor de combustão interna para o carro elétrico.
Sabemos quão rápida e exponencial precisa ser nossa travessia de uma economia dependente de energia fóssil e associada ao risco de desmatamento e de emissões de metano para um mundo de baixo carbono. Não há dúvidas. Mas temos também de lidar com as dúvidas e incertezas embutidas nessa transformação.
Uma mentalidade derrotista não ajuda em nada, como costuma dizer a ex-secretária executiva da Convenção do Clima Christiana Figueres. Não temos o luxo de ser Pollyanas, mas temos o dever de apostar no que ainda é possível fazer muita coisa, ante o cenário catastrófico de clima instável que se avizinha.
Assim como cada personagem da mitologia grega teve um papel a desempenhar no grande drama dos deuses, cada um de nós tem um papel a desempenhar na resposta a esta crise. Por exemplo, ao reduzir nossas emissões pessoais, enviamos um poderoso sinal ao mercado, criando demanda por soluções alinhadas com o Acordo de Paris.
No final, o desafio é despertar Cronos para uma nova era de ação climática, onde reconhecemos a urgência do tempo e agimos de acordo. Assim como Cronos foi chamado a dar lugar a uma nova era, nós também somos chamados a dar lugar a um novo modo de viver neste planeta mais quente e que pode se tornar ainda mais instável, sem a nossa sincronia.