Hoje, no lugar de livros, trago uma enorme microrreflexão. Você vai entender a incoerência ao longo do texto.
A Feira do Livro Infantil de Bolonha, na Itália, a maior e mais importante do gênero, que aconteceu neste ano de 6 a 9 de março, discutiu o papel e o lugar da produção literária infantil africana e afro-latino-americana no mundo.
O Brasil esteve presente no debate e deu aula sobre a transformação que precisamos fazer.
Nossa representante foi a experiente Bel Santos Mayer, coordenadora do Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (Ibeac), co-gestora da LiteraSampa e docente da pós-graduação Literatura para Crianças e Jovens (Instituto Vera Cruz).
Ela contextualizou como o racismo permeia também a literatura e marca muitas infâncias, dificultando a quebra dessa espiral negativa, com jeitão de infinita.
Proferiu frases fortes, duras e sofridas, que machucam quem ouve – seja porque é espectador, vítima ou autor de racismo.
A convocação para o antirracismo é urgente e inadiável.
Em 2007, o professor de psicologia e educação da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, Derald Wing Sue, pesquisador do racismo e do antirracismo, trouxe de volta à consciência e ao debate público a noção de microagressões, nascida nos anos 1970.
Presentes no dia a dia, elas são micro apenas para os autores e para os espectadores, nunca para as vítimas.
Infelizmente, a literatura infantil está cheia dessas microagressões, refletindo um sistema mais amplo, um mercado que procura apagar ou disfarçar o negro e suas características físicas, ou fazendo ocupá-los um único lugar, como se não pudessem estar nas mesmas posições que os brancos.
Para combater o racismo na literatura infantil, Mayer sugere cinco maneiras de olhar para ela – e de consumi-la.
Valorizar a autoria negra
Em primeiro lugar, pensar e priorizar autores e ilustradores negros, e editoras e livrarias especializadas e de propriedade de empreendedores negros. Sempre foi mais difícil para esse grupo, historicamente marginalizado, publicar, fazer negócios e se destacar.
Além disso, têm a potência de falar de si e de suas histórias sob um ponto de vista muito particular, agregando uma perspectiva que um autor branco não viveu, mas apenas observou – seja na sua geração ou partir das anteriores.
Autores negros escrevem sobre o que quiserem
É necessário e parte do combate ao racismo literário não esperar que negros escrevam apenas sobre racismo, sobre escravidão, sobre estereótipos ou ativismo.
“Combater o racismo é responsabilidade de todos. Também queremos falar de amor, escrever o que se vive. Será sempre a partir da nossa história, da nossa cor e das nossas dores”, explica Mayer, pegando emprestado o conceito de “escrevivência”, criado pela escritora mineira Conceição Evaristo, que também é pesquisadora de literatura e foi professora na rede pública fluminense.
Literatura é um lugar de encontro
Crianças negras também devem encontrar colo, afeto e aconchego na literatura. “Colo é um lugar de relaxamento, de troca de temperatura, e o que se lê te ajuda e te leva a sonhar”, diz Mayer.
Por muito tempo, e infelizmente ainda hoje, “crianças negras nem sempre encontram uma literatura que seja espelho.”
Segundo Mayer, mais da metade das crianças negras se envergonha ao abrir um livro. Com certa frequência personagens negros ocupam espaços e profissões consideradas inferiores, chovem modelos de beleza de cabelos lisos e ilustrações com traços grotescos não são raras.
“Se faz coisas bonitas pensando em apenas um tipo de normalidade”, diz. Para crianças negras, a literatura perde seu papel de lugar de sonho e de reforço de autoestima.
É preciso humanizar o negro também na literatura
Uma das funções da escrita é transformar nossa existência em palavras, o que nos humaniza. No caso dos negros, porém, o movimento foi inverso.
Como exemplo, Mayer conta que houve uma época em que personagens negros no Brasil não tinham nomes, apenas apelidos. Ela encaixa esse fato no conceito de microinvalidação.
“Temos nome e sobrenome. Temos o direito de existir na literatura e nos textos, com uma presença humanizada”, pontua. Ela lembra que as diferenças são frequentemente vistas como defeito e não como diversidade. “A representação caricatural também é desumanizadora.”
Criar uma nova perspectiva para ancestralidade e religiosidade
A reconstrução dos vínculos com a cultura africana é constitutiva para uma população que foi violentamente arrancada de suas casas.
Hoje, ela se dá por meio do estudo e da compreensão da religiosidade de uma civilização – passando pela mitologia dos orixás, numa analogia aos estudos de mitologia grega.
É por esse caminho e pela prática da espiritualidade que a conexão com os ancestrais acontece.
A literatura infantil tem o poder de criar familiaridade com esses temas, contribuindo para a derrubada de estereótipos e preconceitos. Ela deve ser fonte de informação e de narrativas respeitosas, e não de microagressões.