O que pensa o CEO da empresa que tem a Terra como acionista

No SXSW, Ryan Gellert, CEO da Patagonia, diz que os negócios não podem mais se esconder por trás do conceito de externalidades

O que pensa o CEO da Patagonia, que tem a Terra como único acionista
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AUSTIN, Texas* – Não havia nem um ano que Ryan Gellert tinha assumido como CEO da marca de roupas esportivas Patagonia, em plena pandemia, quando em meados de 2021 ele recebeu uma missão do fundador Yvon Chouinard. 

Aos 83 anos, ele queria pensar no futuro da companhia sem a sua presença, com uma preocupação principal: que a Patagonia mantivesse seus princípios. 

Na pessoa física, Chouinard é um conhecido filantropo e conservacionista. Na jurídica, isso sempre se traduziu na estratégia da companhia, que desde 2018 doava 1% das receitas para causas ambientais. 

“Eu pensei: nossa, é realmente um bom momento para fazer isso no meio da pandemia, quando você tem 27 outras coisas pegando fogo”, brincou Geller numa palestra no palco principal do South by Southwest (SXSW), maior evento de inovação do mundo, que acontece em Austin, no Texas. 

“Sendo muito honesto, enrolei um pouco porque achei que a gente pudesse pensar nisso mais para a frente, mas ele estava falando sério.” 

Após meses trabalhando numa estrutura societária inovadora, em setembro de 2022, Chouinard anunciou que doou 100% da empresa ainda em vida. A propriedade passou para uma série de fundos e trusts, que garantem que todo o lucro – cerca de US$ 100 milhões anuais – será destinado para combater a mudança climática e proteger terras virgens em todo o mundo. 

Ou nas palavras da própria Patagonia: a Terra virou sua única acionista.

“Somos assumidamente e sem vergonha nenhuma uma empresa com fins lucrativos, operando num setor que precisa de transformação radical”, disse Geller. “Os negócios não podem mais se esconder por trás do conceito de externalidades.” 

No primeiro ano em que a mudança climática entrou como um dos temas oficiais da SXSW, Gellert foi entrevistado pela jornalista Katie Couric, da CBS, e contou sua filosofia e os desafios de gerir uma empresa com esse modelo. 

Ele falou sobre o impacto ambiental da indústria da moda, as diversas incertezas e paradoxos no caminho da sustentabilidade – e sobre a recente entrada da Patagonia no negócio de agricultura e alimentos, com a compra da Moonshot, uma fabricante americana de snacks saudáveis.

Resumimos os principais pontos da conversa:

Na prática, como está funcionando esse novo modelo de empresa?

Em muitos aspectos, é exatamente como costumava ser. Meu trabalho é gerir um negócio com uma série de valores, fazer a menor quantidade de concessões possível, ser radicalmente transparente e honesto com nós mesmos, com nossas pessoas e comunidades sobre nossos desafios. E usar todas as ferramentas que existem para escalar o impacto em benefício de proteger a natureza e a vida para todos.

Você descreve a Patagonia como uma empresa “assumidamente com fins lucrativos”. Por que isso é uma declaração tão importante para você?

É importante porque nós, como humanos, criamos a crise climática e ecológica. Não foi uma coisa que nos foi imposta pela natureza, é algo que nós geramos. 

É uma ameaça existencial para nós humanos, é certamente uma ameaça para tudo que valorizamos, inclusive o mundo natural. E é um problema grande e complicado o suficiente para que precisemos de todas as alavancas que temos para resolvê-lo.

E isso envolve o governo fazendo o que ele foi criado para fazer, que é resolver esses problemas e mobilizar recursos. Isso envolve os indivíduos, não só das decisões que tomamos no foro íntimo, mas exercendo nosso papel como parte de uma sociedade civil. E os negócios não podem mais se esconder por trás do conceito de externalidades. 

Eu tenho orgulho de comandar uma empresa com fins lucrativos operando em um setor que precisa de transformação radical. 

A narrativa de maximizar o lucro a qualquer custo é muito entranhada nos Estados Unidos. Como mudar uma mentalidade de negócios cujo mantra é apenas lucro, lucro e lucro? 

Primeiro, vamos reconhecer que há uma narrativa comumente aceita nos Estados Unidos de que, se você tem mais dinheiro, você é mais bem sucedido – e portanto tem mais valor. E acho que a maior parte das pessoas nessa sala concorda que isso é uma grande bobagem. 

E outra narrativa que dizemos a nós mesmos é que os negócios deveriam ficar nesse caminho muito estreito, quando, na realidade, praticamente em toda crise que enfrentamos como humanos, os negócios desempenham um enorme papel. É a mesma coisa que eu digo para meus filhos: se você fez uma bagunça, precisa arrumar. 

E as pessoas? Você sente que a maré está virando para consumidores querendo ser mais conscientes nas suas decisões de compra? 

Está virando completamente. E esse vai ser um raro momento em que vou fazer um elogio às mídias sociais. Um dos pontos positivos das mídias sociais é que elas aumentaram muito o nível de transparência. Não há muitos lugares para se esconder agora. 

As pessoas conseguem ter uma percepção mais profunda do que está acontecendo em diversas empresas. 

As pessoas costumam dizer: o que eu posso fazer? Lembro do poder que você tem como consumidor, como funcionário em tomar decisões. O maior e mais lisonjeiro papel que você pode ter na sociedade não é de CEO, não é ser um advogado, não é ser um senador, mas é ser um cidadão.

Mas você acha que outros negócios vão querer emular o que a Patagonia está fazendo? 

Eu sempre digo que os líderes das empresas vão fazer a coisa certa uma vez que eles esgotarem todas as outras alternativas. Então precisamos criar um ambiente no qual eles sintam a pressão, a necessidade. 

Vamos falar sobre consumo desenfreado. As pessoas usam 36% menos as roupas que elas compram do que há 15 anos. E de acordo com a Agência de Proteção Ambiental (EPA, na sigla em inglês), 85% dos materiais têxteis dos Estados Unidos estão em aterros sanitários ou foram incinerados em 2018. As pessoas compram as roupas, usam elas por uma estação e depois jogam fora. Qual o impacto disso no ambiente? 

Se você olhar para todas as outras métricas, elas mostram como as pessoas compram hoje muito mais do que faziam 20, 30 anos atrás. Quanto mais itens de roupa você tiver, menos você vai usá-las. E há a percepção de que basta você colocá-las numa caixa de reciclagem num estacionamento e, pronto, ela tem que parar em algum lugar. E não é assim. 

Não é segredo para ninguém: não necessitamos, no mundo desenvolvido, de todas as coisas que temos, quando as coisas são feitas pensando na qualidade. 

Nós tentamos criar e vender produtos de qualidade. Nós investimos no reparo das roupas. Se o zíper de uma das jaquetas que nós criamos quebrou – tenha ela 20 dias ou 20 anos – queremos que você conserte. 

Outra coisa que queremos fazer é comprar os produtos de volta. Queremos chegar ao armário dos nossos consumidores. Se você tem coisas que ainda estão boas para uso e não está usando, nos ajude a fazer com que elas cheguem a outra pessoa. 

E, principalmente, tenha responsabilidade pelo produto. Nós estamos pensando no fim da vida útil do produto e na melhor maneira – reusar, reciclar ou fazer o upcycle para usar novamente esses recursos. 

Vocês estão pensando em toda a cadeia de produção, do cultivo à manufatura, passando pelo transporte. Mas fazer uma mudança numa parte da cadeia pode ter um impacto negativo em outra parte. É quase como um quebra-cabeça. Como você lida com isso? 

Um dos meus ditados favoritos é: com frequência, a recompensa por resolver problemas é o convite para um problema ainda maior. E isso existe no trabalho. Se você entender isso, pode abraçar o desafio e construir a resiliência necessária. No fundo, é sobre as consequências desconhecidas das decisões. 

Isso me lembra uma reunião que acompanhei como observador do nosso conselho de administração com o head de materiais, chegando de Amsterdam logo que assumi como CEO. Ele estava dando algumas ideias sobre alternativas naturais e orgânicas ao nylon, que é baseado no petróleo. Ele enfrentou uma série de questões: faz sentido aumentar a área cultivada para produzir roupas? Moralmente é algo que aceitaríamos? 

E não importa quanto a Patagonia tente fazer a coisa certa, no fim das contas muitos dos produtos vão parar em aterros sanitários.  Até que ponto vocês podem fazer alguma coisa a respeito? 

Espero que você nunca nos ouça dizer: não podemos fazer nada a respeito. Esse é o tipo de argumento atrás do qual muitas empresas estão se escondendo. O que tentamos fazer é entender o cenário na melhor das nossas habilidades, resolver cada problema que sabemos como resolver e tornar as soluções open source.

Há alguns anos trouxemos para o mercado o primeiro macacão de neoprene com uma solução natural, não baseada em petróleo, e, assim que o fizemos, abrimos para o mercado não apenas a ideia, mas a cadeia de fornecedores, na esperança que a ideia escalasse. Tem sido lento, mas está começando a escalar. 

Temos um fundo de venture capital interno e seu papel é procurar tecnologias para fazer investimentos mais arriscados. Ver se encontramos soluções para escalar essas coisas. 

Mas tem alguma solução promissora para esse problema do fim da vida das roupas?

No fim da cadeia, um dos principais problemas que enfrentamos é o mix de materiais. Fibras naturais performam de maneira diferente das sintéticas. E misturar materiais dá propriedades de performance diferentes. Mas a reciclagem fica mais complicada quando você mistura materiais. Tem muito progresso sendo feito nesse sentido [de separar os materiais]. Outro aspecto fundamental que estamos focando é pensar o design dos elementos que temos para desenhá-los de forma que seja mais fácil que eles sejam reparados.

Esta semana, a Patagonia anunciou a aquisição de uma companhia de biscoitos chamada Moonshot. Qual a estratégia por trás disso? 

No setor de moda, aprendemos que, se fizermos mudanças na cadeia de suprimentos, podemos tornar as coisas menos ruins. Eu acho que o setor de agricultura tem uma das cadeias mais problemáticas do mundo, mas também está posicionado de forma única para ser parte da solução. Por isso, temos um negócio de alimentos chamado Patagonia Provisions e queremos estar neste espaço para experimentar caminhos diferentes. 

A Moonshot é um negócio único, com um fundador único e disciplina sobre fornecedores locais e altos padrões ambientais. Estamos animados com o que podemos fazer juntos. 

Todos os dias saem notícias sobre o ponto de não retorno e das frustrações a respeito do combate às mudanças climáticas? Como você lida com essas notícias e como isso afeta seu trabalho?

As pessoas, especialmente da minha idade, perderam o direito de ser pessimistas, sentar e dizer o que não dá para fazer. Tenho certeza que vamos conseguir resolver os problemas que criamos? Não. Mas tenho dois filhos que vão herdar um plano que não vai ser o mesmo de formas muito significativas. Temos uma geração com transformações muito profundas. É uma responsabilidade que todos nós temos. 

E você acha que seria possível manter essa mesma mentalidade se a Patagonia fosse uma empresa negociada em bolsa?

É algo que as pessoas me perguntam muito. Enfrentamos muitos desafios na Patagonia, mas escutar dos fundadores que este não é o jeito certo de fazer as coisas não é um deles. Mas qualquer um que diz “ah, eu sou listado, não posso fazer isso”… É uma imensa falta de criatividade e de vários níveis de comprometimento. É apenas uma desculpa conveniente. 

* A jornalista viajou a convite do Itaú