Para o 'Mr. COP', Montreal pode acabar em 'fracasso tremendo'

Braulio Dias, ex-secretário da convenção da biodiversidade da ONU, diz que a COP15 precisa adotar um marco global — sem diluir o texto final

Para o 'Mr. COP', Montreal pode acabar em 'fracasso tremendo'
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É um truísmo dizer que COPs só se resolvem aos 45 minutos do segundo tempo. Mas Braulio Dias está ficando preocupado com os rumos da conferência de Montreal.

Dias dedica sua vida profissional à biodiversidade – e à política global em torno dela – desde a época em que o assunto só interessava a cientistas e ambientalistas abnegados.

Doutor em zoologia e professor do departamento de Ecologia da Universidade de Brasília, ele foi a maior autoridade da Convenção sobre Diversidade Biológica da ONU entre 2012 e 2016.

A COP15 termina oficialmente na segunda-feira, e Dias tem dois grandes temores sobre o andamento das negociações.

O primeiro é que não se chegue a um acordo sobre o Marco Global da Biodiversidade, o chamado “Acordo de Paris da natureza”. “Seria um fracasso tremendo”, afirma ele.

O segundo é relacionado. Nas tentativas de resolver as diferenças que restam nos rascunhos, os negociadores podem simplesmente apagar os trechos entre colchetes (ou seja, sem consenso), jogando fora a ambição.

No ainda insular mundo das negociações mundiais sobre biodiversidade, Dias é uma celebridade e uma das pessoas mais demandadas da conferência — ainda mais porque ele foi indicado como representante do futuro governo Lula em Montreal.

Entre uma reunião e outra, ele conversou com o Reset num sofá na porta da plenária principal do Palais de Congrès. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

A relevância das COPs da biodiversidade

O resultado das conferências não é legalmente vinculante. Ele é moralmente vinculante, ele é politicamente vinculante. Induzir, ajudar os países fazer melhor, capacitar, promover a cooperação… é assim que a agenda avança.

Tivemos na última década um plano estratégico com 20 metas globais. Muita gente diz: “Ah, foi só fracasso”. Não concordo, porque o objetivo é definir uma agenda global e induzir os governos a melhorar seus esforços de conservação, [promover] o uso sustentável da biodiversidade e a repartição de benefícios.

A urgência da COP15…

A conferência deveria ter acontecido em 2020, mas foi adiada por causa da Covid. Foram feitas reuniões virtuais [desde então], mas os acordos não são resolvidos apenas nas salas de negociação. São [destravados em] conversas de corredor, cafezinhos e reuniões em hotéis.

Depois da conferência de Genebra (realizada em março, presencialmente, em preparação para Montreal), comecei a me comunicar com vários colegas do secretariado da convenção: “Olha, do jeito que está, a COP15 vai ser um fracasso”.

… e o risco de uma decisão sem força

Se a gente não conseguir aprovar o GBF [sigla em inglês para Marco Global da Biodiversidade], isso vai ser visto por todo mundo como um tremendo fracasso, porque o mundo vai ficar sem uma referência, sem uma agenda global de biodiversidade.

Isso vai causar prejuízos enormes pras ações de biodiversidade de todo mundo.

No início da COP o texto estava cheio de colchetes (trechos do documento em que não há consenso). Agora estamos em outra dinâmica. De fato está havendo um esforço maior de negociação.

Estamos conseguindo limpar o texto. O problema é que, ao tirar os colchetes, você pode perder também o conteúdo. Aí você tem decisões diluídas, sem ambição. Isso não tem serventia nenhuma. Esse é um grande risco.

A pressão sobre o setor privado

As empresas são os maiores usuários, os maiores consumidores da biodiversidade. É a matéria-prima para todos os setores. E a indústria e a agricultura têm muitas práticas predatórias.

Então é preciso incorporar o setor produtivo nos compromissos. É o que a gente chama de mainstreaming da biodiversidade, quer dizer, você tornar a biodiversidade um tema de todos os setores, não só da agenda ambiental. [Do contrário] é uma batalha quase impossível.

Começamos a incorporar o setor privado na COP8, em Curitiba, em 2006. Fizemos duas reuniões preparatórias com lideranças do setor privado. Uma foi organizada em Londres e outra em São Paulo.

Daí saiu uma primeira decisão na Convenção da Biodiversidade convidando o setor produtivo a participar das decisões e a compartilhar responsabilidades.

Hoje, as grandes empresas têm que apresentar relatórios anuais de sustentabilidade. O padrão para isso, o Global Reporting Initiative (GRI), só exige reportar sobre os impactos ambientais nas principais plantas industriais.

No entanto, muitos estudos mostram que a maior parte dos impactos das grandes empresas está na cadeia de suprimento, que se espalha pelo mundo inteiro.

[Precisamos] de mais transparência e informação sobre isso. A meta 15 tem como objetivo obrigar as empresas a reportar regularmente suas dependências e impactos negativos e positivos em relação à biodiversidade.

Espero que essa linguagem seja mantida. Uma grande aliança de empresas modernas, a Business For Nature, apoia [a obrigatoriedade das divulgações]. Mas é claro que indústrias atrasadas não querem. Essa é a briga.

A expectativa do novo governo

O resto do mundo ficou muito aliviado e esperançoso de que o Brasil volte ao seu trilho normal de ser um país muito ativo, um dos líderes da agenda ambiental.

Há um grande interesse do [futuro] governo brasileiro em uma agenda global de biodiversidade ambiciosa, de valorizar mais a questão da relação entre florestas e populações indígenas e comunidades locais ou tradicionais. A questão da restauração também é importante.

Mas o presidente Lula vai assumir um governo com pouco dinheiro. Uma das questões de interesse do novo governo são oportunidades de parceria financeira e internacional, como por exemplo o Fundo da Amazônia, que Lula já anunciou que vai reativar. Só que isso sozinho não vai ser suficiente. Vamos ter que ter outros mecanismos.

A questão é: o que está sendo negociado aqui atende às preocupações do novo governo? Em parte. A gente ainda não chegou no final da negociação, então não sabemos ainda o resultado final. Mas sabemos que está difícil.

Quem vai cobrir os custos? Os europeus não querem assumir compromissos financeiros com recursos públicos. Tem o potencial do financiamento privado, mas queremos ver também o compromisso dos governos.

Eles e alguns outros países também não querem se comprometer com a restauração ecológica. Aceitam compromissos de restauração para que terras voltem a ser produtivas, com lavouras e pastagens. Isso é relevante, mas e a restauração ecológica, como é que fica? Isso para o Brasil é uma questão chave.