As mudanças climáticas em andamento, materializadas em inundações e secas anormais, já alteram rotas comerciais e afetam a estabilidade da cadeia mundial de suprimentos.
Uma seca histórica que atinge a China — ponto comum de complexas redes de produção que se espalham por continentes — é mais uma amostra de como a economia mundial está exposta ao aumento das temperaturas.
No mês passado, uma estiagem prolongada secou rios, paralisou a indústria e prejudicou a safra em seis províncias que juntas representam um quarto da produção de grãos do país.
A situação foi mais grave na província de Sichuan, no sudoeste chinês, uma região com a população da Alemanha e o PIB da Turquia. O governo decretou a paralisação das fábricas em 19 das 21 cidades de Sichuan para evitar um apagão energético que poderia se alastrar pelo sul do país.
As máquinas ficaram paradas por uma semana nas fábricas da Volkswagen e da Toyota. A Catl, maior fabricante de baterias do mundo e importante fornecedora para linhas de montagem de carros elétricos, e a Foxconn, uma das principais fornecedoras da Apple, também tiveram que paralisar suas atividades.
Nos últimos anos, a província de Sichuan se tornou um importante hub industrial para fabricantes de produtos chave para a transição energética. Faz sentido estar ali para produzir painéis solares e baterias, pois a região tem a maior reserva de sais de lítio da China e 80% da energia local é gerada em hidrelétricas.
Mas o verão deste ano secou mais de 60 rios de toda a bacia do Rio Yangtzé, o maior da Ásia, esvaziando os reservatórios das hidrelétricas. O Yangtzé está em seu menor nível desde 1865, segundo o governo chinês. É a mais severa e mais longa onda de calor desde os anos 60, quando o Centro Meteorológico Nacional da China começou a monitorar o clima do território chinês.
As altas temperaturas registradas em agosto, que ultrapassaram os 40°C por dias seguidos, também prejudicaram as lavouras de arroz e milho da região, o que afetou toda a cadeia de alimentos do país e pode levar Pequim a importar mais grãos do Brasil ou dos Estados Unidos.
Reduzindo a dependência da China
Segundo os comunicados das diversas empresas com sede em Sichuan, o impacto das paralisações não foi significativo. Mas, mesmo sem grandes rupturas comerciais, o movimento para diminuir a exposição a um só país, iniciado na pandemia, deve se intensificar.
A Apple, que anunciou um novo modelo de iPhone esta semana, vem sondando novos fornecedores na Índia, para que não haja atraso na entrega de aparelhos. No início do ano, parte da produção de iPads já havia sido transferida para o Vietnã.
Outros dos chamados tigres asiáticos também têm sido estudados pelas montadoras para a fabricação de carros elétricos.
Na Europa, existe a motivação extra de buscar fornecedores de ingredientes farmacêuticos ativos (IFAs) hidrogênio e semicondutores, entre outros bens estratégicos, produzidos em uma matriz energética mais limpa – muitos na União Europeia veem com desconfiança os esforços chineses em melhorar seu sistema energético.
Com o corte do suprimento russo de gás, os próprios europeus enfrentam o dilema de retomar a queima de combustíveis fósseis para garantir eletricidade e aquecimento no inverno.
O regime autoritário chinês, entretanto, não precisa prestar contas. Representantes do governo disseram à emissora estatal chinesa que a meta de reduzir a dependência da queima de carvão ainda está de pé, mas só começará em 2026.
Até lá, novas usinas de carvão seriam usadas apenas para dar apoio à energia renovável intermitente de fontes verdes e trazer mais segurança energética para o país. O país planeja adicionar 270 GW de capacidade térmica ao seu sistema até 2025.
De 2006 a 2020, a China, maior consumidora de energia do planeta, reduziu a capacidade de suas usinas de carvão de 320 GW para 210 GW, mas com a crise atual, ela voltará ao patamar de geração de energia suja de 2011.
Seca, terremoto e lockdown, em menos de um mês
Não foi só a temperatura extrema que atingiu a Província da Abundância, como é conhecida Sichuan. Chengdu, a capital, está sob lockdown desde o dia 1º de setembro, consequência da política chinesa de “transmissão zero de Covid-19”, que impõe o confinamento ao menor sinal de aumento de casos.
Além disso, as autoridades chinesas evacuaram 100 mil habitantes temendo uma inundação, e, no dia 5 de setembro, a região foi abalada por um terremoto de magnitude 6,6, cujo epicentro estava a 200 km da capital.
Mesmo com o abalo sísmico, o governo chinês manteve o racionamento de energia e água e pouco flexibilizou o confinamento imposto na região metropolitana de Chengdu, onde mais de 21 milhões de pessoas não podem sair de casa após a identificação de 138 casos de Covid na região.
É o lockdown mais severo desde o imposto em Xangai, no primeiro semestre. Na ocasião, o principal centro financeiro da China permaneceu quase três meses confinado.
Enquanto o resto do mundo convive com o vírus, com o auxílio da vacinação, o governo chinês insiste em sua política de contaminação zero.
Para não prejudicar a produção, fábricas – com o aval do governo – têm adotado a polêmica prática de “gestão em circuito fechado”, isto é, os funcionários passam a morar dentro das instalações, se afastando de suas famílias e gerando especulações sobre excesso de carga horária de trabalho.
Segundo o Financial Times, entre as empresas que estão operando desta forma estão Volkswagen, Foxconn e Hitachi.