Depois de anos de estudos, discussões e idas e vindas políticas, tudo indica que a precificação do carbono está muito próxima de se tornar uma realidade no Brasil, criando um mecanismo financeiro para penalizar quem emite mais e premiar quem emite menos (ou captura) carbono, como forma de conter o aquecimento global.
É consenso entre os observadores a sensação de “agora vai” em relação ao mercado regulado de CO2 – só não se sabe ao certo ainda o quê.
O Executivo apresentou na terça-feira da semana passada sua versão do Projeto de Lei, um documento que circulou furiosamente em grupos de WhatsApp.
Estudiosos do assunto apontam alguns retrocessos e confusões em relação à proposta que estava na mesa, um texto discutido ao longo do ano passado inteiro e que já havia passado pela Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento da Câmara dos Deputados.
Uma dos pontos controversos envolve a criação de etapas burocráticas no mercado de compensações voluntárias, hoje totalmente livre de amarras regulatórias.
Outro destaque dos especialistas é o risco de que as próprias empresas de setores intensivos em carbono – que farão parte do mercado regulado – tenham peso demais na decisão dos seus próprios limites de emissões.
O texto governista foi considerado um balão de ensaio. O objetivo seria colher mais reações para aperfeiçoar a proposta. Mas a expectativa é que, depois dessa etapa, o que vier será aprovado. O tema já tramita em regime de urgência.
Embora não existam garantias em relação a prazos, há quem espere novidades em poucas semanas. O governo planeja um evento internacional sobre mercados de carbono em maio, e a intenção seria ter uma resolução até lá.
“Sinto que [o PL apresentado] virá com uma força política implacável”, diz uma pessoa que participa ativamente das discussões. “Passados os primeiros dias de choque, começo a me convencer de que teremos de conviver com esse texto.”
Livre, pero no mucho?
Existem dois tipos de mercado de carbono: o voluntário e o regulado. Mais fácil pensar neles como os mercados livre e obrigatório.
Mesmo depois de aprovado o marco legal, a grande maioria das empresas não será obrigada a reduzir suas emissões de CO2. Mas muitas o farão – ou já o fazem – por pressão dos seus clientes e acionistas ou por acreditar em cidadania corporativa. Essas trocas compõem o mercado voluntário.
O primeiro ponto controverso do projeto apresentado pelo governo diz respeito justamente a essas negociações livres.
Diversas empresas desenvolvem projetos que evitam a derrubada da floresta amazônica, por exemplo. Essas ações geram créditos de carbono que podem ser comprados por qualquer companhia que decide compensar voluntariamente suas emissões.
As iniciativas de preservação (e os créditos correspondentes) recebem o carimbo de aprovação de entidades reconhecidas internacionalmente – isso basta para a companhia que optou pelo offsetting.
(Leia aqui, se quiser entender melhor a diferença entre os mercados e a lógica por trás da precificação do CO2)
Na redação do governo, esses mesmos créditos teriam de ser registrados também num sistema operado pelo governo federal, que teria a atribuição extra de chancelar essas certificadoras globais.
Uma corrente afirma que essa etapa burocrática adicional poderia representar “a morte dos mercados voluntários, que estão crescendo loucamente”.
Mas essa opinião não é unânime. “Por um lado você cria mais amarras, mas por outro oferece maior segurança jurídica e até mesmo aumenta o valor dos créditos”, afirma o advogado Luiz Gustavo Bezerra, sócio da prática de ambiental e mudanças climáticas do escritório Tauil & Chequer.
Uma fonte ouvida pelo Reset afirma que representantes do governo foram receptivos à ideia de não criar essa exigência adicional para o mercado voluntário.
Igreja x Estado
A separação completa entre as transações livres e o mercado regulado é uma das ideias centrais defendidas pelo Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS).
A entidade, que reúne 85 companhias de grande porte, recomenda um mercado regulado nos moldes do europeu, o European Union Emissions Trading Scheme, ou EU ETS.
A participação no mercado regulado será obrigatória para determinados setores da economia – tipicamente indústrias muito poluentes, como siderurgia, química, cimento e assim por diante.
A maior parte desses esquemas operam num sistema chamado cap and trade. O regulador estabelece um limite (cap) de emissões. Quem se mantiver abaixo dele pode vender (trade) as “permissões de poluição” que sobram.
A proposta apresentada pelo Executivo tem uma lógica diferente. A principal mudança – e a mais preocupante, segundo os especialistas – diz respeito às metas que terão de ser cumpridas pelas empresas.
O texto atual determina que elas serão definidas em acordos setoriais, ou seja, pelas próprias empresas em cada segmento econômico, com a participação e posterior aprovação do governo. A inspiração é a Política Nacional de Resíduos Sólidos.
O primeiro problema é um eventual conservadorismo pelas empresas no estabelecimento das metas. “É um sistema mais democrático do que a imposição por regulamento, mas minha experiência com os acordos setoriais de logística reversa sinaliza que o setor privado não teria maturidade para chegar a um consenso sobre metas de redução com a ambição adequada e na celeridade devida”, diz a consultora em sustentabilidade Ana Luci Grizzi.
No caso da reciclagem de eletroeletrônicos, quase dez anos se passaram até que houvesse consenso sobre a política de logística reversa.
Outra diferença em relação ao cap and trade tradicional seria a própria lógica do mecanismo. Em vez de negociar “permissões para poluir”, as companhias que ficassem abaixo do limite de poluição estabelecido gerariam créditos de carbono em suas próprias atividades industriais.
Em tese, os dois modelos podem atingir o objetivo esperado, que é a redução das emissões. Mas, além de dar mais voz justamente às companhias que terão de ser reguladas, o sucesso do desenho proposto pelo governo estaria sujeito à qualidade da implementação das regras.
Já o modelo cap and trade tradicional é comprovado e utilizado com bons resultados em diversas partes do mundo, além da Europa.
Antes tarde do que nunca
A urgência de uma definição regulatória é uma das poucas unanimidades quando se fala em mercado de carbono no Brasil. Cerca de 70 jurisdições, compreendendo mais de um quinto das emissões de CO2 do planeta, já estão sujeitas a algum tipo de mecanismo de precificação.
Para algumas pessoas que acompanham de perto as negociações, a sensação pode ser resumida com a expressão: “o ótimo é o inimigo do bom”.
A crença é que o importante é aprovar rapidamente a legislação no Congresso e tentar fazer os ajustes necessários mais adiante, na fase do detalhamento de regras.
Em comunicado, o CEBDS afirma que o assunto é urgente, mas não deve haver “atropelos ou perda de consensos já construídos”
Parte da demora na aprovação da matéria no Congresso, dizem os observadores, se explica pela briga para ver quem será “o pai ou a mãe da criança”.
“Até bem pouco tempo atrás, esse assunto não chamava votos. Mas agora ele está em pauta, e estamos em ano eleitoral”, afirma uma pessoa que observa a movimentação em Brasília.
As disputas acontecem até mesmo entre o Executivo e sua base de apoio no Congresso. A deputada governista Carla Zambelli (PL-SP) foi a relatora do projeto de lei na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara.
Mesmo sabendo que os ministérios da Economia e do Meio Ambiente inevitavelmente pediriam mudanças, ela endossou a maior parte da proposta que já estava sobre a mesa.
O resultado do desencontro foram ainda mais atrasos no encaminhamento do assunto.
Outro empecilho foram os “vendedores de prancha de surfe que nunca pegaram uma onda”, diz o consultor Marco Antonio Fujihara, que acompanha os mercados de carbono desde o Protocolo de Kyoto, há quase 25 anos. “As pessoas não sabem o que estão falando. Mas muita gente que não faz ideia do assunto quer se meter porque é ‘bonitinho’.”