Crise dos fertilizantes é chance para Brasil acelerar agro sustentável

O risco de interrupção no fornecimento da Rússia é oportunidade para avançar em biofertilizantes, amônia verde e outras técnicas para descarbonizar o campo

Crise dos fertilizantes é chance para Brasil acelerar agro sustentável
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A guerra na Ucrânia pode ser o incentivo decisivo para uma onda de inovações sustentáveis na agricultura brasileira.

Assim como a dependência do gás russo força os europeus a acelerar a busca por fontes de energia limpas, a perspectiva de interrupções no fornecimento de fertilizantes expõe uma vulnerabilidade semelhante nas plantações daqui.

O Brasil é o quarto maior consumidor de fertilizantes do mundo, e o maior importador. Somente a cultura da soja consome 40% do insumo aplicado no país, segundo a Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos.

Ainda não está claro qual será o efeito da guerra nessa cadeia de suprimentos, mas os sinais apontam para um conflito prolongado no Leste Europeu.

A ministra da Agricultura, Tereza Cristina, está com viagem marcada para o Canadá. O país é o maior produtor mundial de potássio, um dos três macronutrientes usados na agricultura. Quase a totalidade do potássio usado nas lavouras brasileiras vem do exterior.

Mesmo que uma solução emergencial seja encontrada, já se sabe há muito tempo que nosso maior negócio de exportação não pode estar tão exposto ao que acontece do outro lado do mundo.

A má notícia é que essa dependência não será resolvida tão cedo. O plano nacional de fertilizantes que o governo federal promete lançar até o fim de março prevê uma redução de 85% para 60% da participação dos insumos estrangeiros na agricultura brasileira – nos próximos 30 anos.

Essa conta reflete apenas um aumento da produção nacional dos mesmos insumos hoje importados. 

Mas o setor agropecuário brasileiro pode dar outro salto em paralelo.

Avanços que vão do hidrogênio verde aos bioinsumos, todos em desenvolvimento no Brasil, têm o potencial de não apenas proteger os produtores nacionais de choques externos como também de descarbonizar o campo e tornar nossos grãos e proteínas mais atraentes para o resto do mundo.

Questão de escolha

Competitividade e responsabilidade ambiental andam cada vez mais juntas e deveriam ser um dos pontos essenciais de qualquer política relacionada ao setor agrícola.

Mas um dos pontos fundamentais do plano de fertilizantes que tornou-se prioritário para o atual governo federal caminha no sentido oposto.

Uma das soluções previstas para garantir o abastecimento de potássio é a extração do minério na Amazônia.

A existência de jazidas na região é conhecida há mais de uma década, mas boa parte delas fica em reservas indígenas, onde a exploração é proibida por lei.

Ontem, a liderança do governo na Câmara começou a recolher assinaturas para apreciar em regime de urgência um projeto de lei que libera a mineração em terras protegidas.

As reservas da Amazônia são de fato relevantes, diz Mauro Osaki, do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada da Esalq, a escola de agricultura da Universidade de São Paulo.

Mas há alguns poréns. Primeiro, diz o pesquisador, nem a totalidade do potássio amazônico garantiria autossuficiência ao país.

Em segundo lugar, nenhuma empresa séria se atreveria a entrar em territórios das populações originais para abrir uma mina de potássio.

“Isso é uma insanidade, uma idiotice”, diz um gestor com ampla experiência em agronegócio e conhecimento dos desafios ESG do setor. “Essas reservas são conhecidas há muito tempo, mas não foram exploradas por um bom motivo.”

Não é difícil imaginar que grãos que cresceram com a ajuda de fertilizantes associados à destruição da Amazônia sejam rejeitados por compradores cada vez mais preocupados com a cadeia completa da produção.

Outro temor dos ambientalistas é que a guerra na Ucrânia seja usada como desculpa para “passar a boiada”, nas palavras do infame ex-ministro Ricardo Salles. O potássio abriria o caminho para outras atividades de mineração na floresta.

Má-fama internacional

Canadá, Rússia, Belarus e China são, pela ordem, os maiores produtores de potássio no mundo. Juntos, os quatro países respondem por quase 80% da produção global.

Em comparação com o de outras potências agrícolas, o solo brasileiro é pobre em nutrientes, o que significa que sempre seremos importadores.

Mais importante que tirar o potássio de terras brasileiras (algo que, mesmo aprovado, levaria muitos anos) é construir ­– ou ao menos não destruir – pontes com os grandes fornecedores globais.

“O Brasil não está alinhado com o Ocidente na questão da guerra da Ucrânia, então o Canadá não estará tão receptivo aos nossos apelos. E a China quer aumentar muito sua produção agrícola local, ou seja, não deve sobrar muito para exportação”, afirma o gestor.

Isso não significa que não existam alternativas.

Suzi Huff, geóloga pesquisadora dos programas de pós-graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural da Universidade de Brasilia (UnB), aponta que um dos melhores substitutos para o potássio importado é a remineralização dos solos por meio da rochagem.

Trata-se de uma técnica de incorporação de rochas moídas ao solo, aproveitando até mesmo rejeitos de mineração sem destino útil.

Os rejeitos da mineração são um dos grandes males do setor no país. Eles se acumulam e encobrem nascentes e mata nativa e podem contaminar lençóis freáticos. Para Huff, o reaproveitamento desse material na agricultura é uma alternativa ambientalmente sustentável.

“A técnica libera nutrientes no solo lentamente, tem maior durabilidade e não há necessidade de reaplicação a cada plantio. O efeito dura até quatro anos. O produtor depende das rochas que já existem no próprio território, diminuindo a emissão de carbono via transporte”, afirma Huff.

A incorporação de rochas recupera solos desgastados, gera rendimentos até 30% superiores e, é claro, o produtor não sofre com oscilações de câmbio ou problemas políticos externos.

José Carlos Polidoro, pesquisador da Embrapa Solos e integrante da equipe que elabora o plano nacional de fertilizantes, afirma que a rochagem é uma possibilidade, mas faz uma ressalva: ainda não temos tecnologia para implantá-la em larga escala, e no curto prazo não seria possível atender à demanda dos grandes produtores.

À moda antiga

Parte da solução, na crise atual e num futuro sustentável, passa também por uma volta às raízes (com o perdão do trocadilho).

Técnicas como agricultura regenerativa e o uso de fertilizantes e defensivos biológicos tendem a ganhar importância.

A motivação é variada. O preço de certos fertilizantes já tinha triplicado no ano passado, antes da ameaça de guerra. Muitos pequenos produtores foram obrigados a recorrer a soluções naturais por necessidade, diz Nelmara Arbex, sócia-líder de ESG na consultoria KMPG.

Os adubos tradicionais incluem compostagem, esterco, cinzas de madeira e “camas” de frangos. Além do baixo custo, esse retorno à natureza significa uma descentralização necessária, afirma Arbex.

“Não podemos mais apostar em grandes soluções. Assim como as hidrelétricas dão lugar à geração distribuída, também acredito que os insumos estarão mais próximos do consumo.”

Mas a bioeconomia também pode ser um negócio grande.

A Vittia, fundada há quase cinco décadas no interior de São Paulo, estreou na bolsa no ano passado ancorada na tese da agricultura sustentável.

A empresa produz fertilizantes especiais, um dos quais tem como base resíduos orgânicos de vacas leiteiras. Esse tipo de insumo ainda responde por menos de 10% do mercado total de fertilizantes, mas a expectativa é que ele siga crescendo. Desde o IPO, os papéis da empresa já subiram mais de 40%.

Além da origem natural, esse tipo de produto ajuda a capturar o metano liberado pelo esterco bovino.

A também paulista Korin, fundada em 1994 como produtora de frangos e ovos e hoje com uma linha extensa de alimentos orgânicos, tem também uma divisão para a produção de bioinsumos.

O desenvolvimento foi pensado inicialmente para as atividades da própria companhia, mas outros agricultores manifestaram interesse nas técnicas naturais da Korin.

A empresa espera um crescimento na venda de bioinsumos caso se confirme a quebra do fornecimento russo.

O hidrogênio verde

A agropecuária brasileira responde por 28% das emissões de gases de efeito estufa no Brasil. Desse total, quase 10% vêm dos fertilizantes nitrogenados.

Além de liberar óxido nitroso, um dos mais nocivos gases causadores do efeito estufa, eles emitem enormes quantidades de CO2 em sua produção.

A base desse insumo é a amônia, produzida com o hidrogênio presente no gás natural. Cada tonelada de amônia resulta em duas toneladas de CO2 despejados na atmosfera.

Uma das apostas da nascente economia do hidrogênio verde (ou H2V, obtido via eletrólise da água) é obter uma amônia com baixa, ou até nenhuma, emissão. E a indústria de fertilizantes deve ser uma das principais viabilizadoras do H2V.

A Yara, gigante norueguesa dos fertilizantes, espera começar a produção de amônia verde em Cubatão (SP) no ano que vem. Em vez de gás natural, a empresa vai utilizar biometano comprado de uma joint-venture da Raízen com a Geo Biogás & Tech.

O Brasil é apontado como um dos países mais bem posicionados para liderar a produção de hidrogênio verde. Além de atender à demanda internacional, um dos objetivos do plano que vem sendo elaborado pelo Ministério de Minas e Energia é a criar um mercado interno para o hidrogênio ou a amônia verdes – e a da indústria de fertilizantes nitrogenados já está aí.

Em agosto do ano passado, foi retomada a produção de fertilizantes nitrogenados na antiga Fafen-SE, planta que pertencia à Petrobras e foi arrendada pela Unigel.

A fábrica hoje usa combustíveis fósseis como matéria-prima, mas é uma candidata natural a dar o pontapé inicial nessa economia de baixo carbono – produzindo adubos verdes, baseados em insumos 100% brasileiros.

Para um país que até os anos 1990 exportava fertilizantes e hoje é o maior importador do mundo, seria uma mudança e tanto.