OPINIÃO: O que o episódio da Reserva diz sobre a prática da diversidade

OPINIÃO: O que o episódio da Reserva diz sobre a prática da diversidade
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A palavra diversidade provavelmente está em quase todas as declarações de empresas como um de seus “valores” ou nas metas empresariais, seguindo exigências de gestoras de investimento, tais como BlackRock, de regulação estatal ou autorregulação do mercado de capitais.

A Reserva declara que adota práticas ESG há anos. É reconhecida por práticas filantrópicas, tais como reverter parte do lucro com cada peça de roupa vendida para a doação de cinco pratos de comida, e práticas ambientais, como uso do algodão orgânico. Na questão da diversidade, oferece uma gama de produtos nos mais variados tamanhos, para atender corpos diversos, e no ano passado lançou uma linha para vestir pessoas com deficiência (PCD).

Mas por que a Reserva segue nos holofotes como um exemplo negativo de prática de diversidade?

A reincidência em relação a casos de racismo e machismo estruturais da marca são inegáveis. Em 2014, a camiseta “Somos todos macacos” e a etiqueta “Para entender melhor a simbologia de lavagem acesse: usereserva.com.br/cuidadoscomaroupa. Ou dê para sua mãe, ela sabe como fazer isso bem”.

Em 2015, a campanha com as frases “Galinha é um animal, Georgia é um ser humano” e “Macaco é um animal, Fabrício é um ser humano”. Em 2016, manequins pretos pendurados pelos pés nas vitrines. Em 2018, a campanha contendo “gemidão” no dia dos namorados. E a mais recente – provavelmente não última – com um manequim preto quebrando a vitrine de uma loja num shopping de Salvador.

Atualmente, as empresas querem a todo custo se mostrar diversas e inclusivas sem fazer muito esforço. Opta-se, então, pelo mais fácil, com mudanças cosméticas: criar novos produtos, pintar a parede de colorido, colocar uns buttons e frases de efeito, criar um ou outro grupo de afinidade, mas sem mudar muita coisa. Esse cenário me lembra do protagonista do filme “Il Gattopardo”, de Luchino Visconti, que diz ser preciso “mudar tudo para não mudar nada”.

Por que é tão difícil para as lideranças da marca – e lideranças de forma geral –  entender que praticar a diversidade é mais do que oferecer acessibilidade de seus produtos? Entender que o S de ESG não é sobre filantropia nem marketing? Diversidade envolve mudança de cultura, profundidade e seriedade na temática.

E qual o maior empecilho para avançarmos?

Achar que nossos grupos e empresas já são suficientemente diversos. E nós todos pensamos assim, inclusive a Reserva. Por quê? Temos nossos vieses inconscientes, vivemos em nossas bolhas e, dentro delas, acabamos “enxergando” a diversidade.

Um exemplo a título de ilustração: em uma das avaliações de desempenho de conselho de administração que realizei, os 15 conselheiros se autoavaliaram com um 5, a nota máxima em diversidade. Pode parecer mentira, mas eles eram nada menos do que 100% homens cisgênero, brancos, sem deficiência, héteros e – pasmem – com a mesma formação. Dentro de sua homogeneidade, eles percebiam suas diferenças e se enxergavam como um grupo diverso.

É por isso que as empresas precisam de um olhar externo, para além de suas bolhas, a fim de enxergar o óbvio.

Um requisito necessário, mas não suficiente, para mudar essa situação é a diversidade dos colaboradores.

No caso da diversidade racial, é preciso que pessoas negras estejam em cargos e posições de poder. Mais ainda, que seja um ambiente no qual elas não tenham medo de expressar o que pensam e sentem. Essa é a chamada segurança psicológica – ou o santo graal da inclusão.

Não dá para se dizer “diverso” sem ser. Uma hora ou outra, a incoerência aparece. E incoerência pode ser facilmente confundida com hipocrisia se houver reincidência.

Esse caso mais recente da Reserva, que novamente não se “atentou” para a estética da sua mensagem, sugere isso. A linguagem e a estética não são neutras. Noam Chomsky diz que “a linguagem determina não apenas nosso pensamento, mas também a própria realidade”.

Por isso, a linguagem estética acaba refletindo o que há dentro de nós. Por outro lado, se mudarmos nossa linguagem (palavras, formas de expressão, imagens, vitrines etc) para sermos mais inclusivos, teremos uma realidade menos excludente também.

Além de incoerência entre discurso e prática, o caso da vitrine da Reserva e a resposta do fundador – que se desculpou dizendo que eram os mesmos manequins usados internamente – sugerem algo mais. Que a empresa e as pessoas lá dentro, especialmente as lideranças, ainda não entenderam quais as causas de suas ações e o motivo de gerarem tamanha repercussão negativa.

Como resolver isso?

É preciso dar um passo atrás e entender se a diversidade é realmente um valor genuíno da empresa. Pode não ser.

Caso o seja realmente, o primeiro passo é assumir as limitações de nosso próprio olhar – algo que já deveria ter sido feito pelas lideranças da Reserva visto sua reincidência não uma, mas algumas vezes, reforçando estereótipos de raça e gênero.

Em segundo lugar, devem-se entender as raízes dessas limitações de forma profunda – com muito estudo, dedicação e investimento no entendimento dos vieses inconscientes e em letramento racial, principalmente por parte das lideranças que estabelecem a cultura empresarial.

Por último, os brancos, como eu, devem sair de suas bolhas, contratando pessoas negras para cargos de liderança. A diversidade está inclusa em práticas de ESG, dentro do S e do G, e não pode ser reduzida a práticas de filantropia aliadas ao complexo do “branco salvador”, embutindo a ideia de pretos mantidos em posição de subserviência.

ESG engloba ações que têm impactos estruturais, como o empoderamento e o acesso a cargos decisórios. Ao mesmo tempo, esse acesso eleva as condições econômicas, diminui estereótipos e serve de imagem a ser perseguida por aqueles que não se enxergam em nossa sociedade além de jogadores de futebol ou trabalhadores domésticos.

Diversidade é sobre empoderamento e voz ativa. Isso é mudança estrutural.

Ter pessoas negras com poder de decisão e sem medo faria com que a ideia de colocar um manequim preto tentando quebrar uma vitrine tivesse sido vetada logo no início (e não importa se o manequim é o mesmo que fica lá dentro, se “não foi a intenção” e se vem um pedido de desculpas depois). Simplesmente não importa, porque é a semiótica que importa, é a nossa reação ao olhar uma foto como aquela.

Diversidade na prática envolve mudança estrutural de cultura, o que é muito difícil de se fazer. Essa mudança genuína requer um forte compromisso com o tema, refletido por ações concretas.

Isso quer dizer que as lideranças devem investir tempo, interesse e recursos financeiros para compreender em profundidade os diferentes tipos de diversidade e começar a mudar seus pensamentos e atitudes individuais, reverberando também nas práticas organizacionais.

Errar é humano, persistir no erro não é apenas falta de inteligência. É total falta de escuta. Enquanto as empresas quiserem parecer diversas sem ser, teremos casos lamentáveis como esse, pois a incoerência fica aparente em poucos segundos.

As organizações devem contratar, promover e escutar pessoas negras urgentemente para melhorarmos como sociedade.

*Angela Donaggio é fundadora da Virtuous Company, consultora e professora dos cursos para conselheiros do IBGC e da Fundação Dom Cabral em ESG, Ética e Diversidade