
A preservação da vida pode ser instintiva ou estratégica e calculada – como parte do mundo vem tentando fazer há 30 anos nas Conferências do Clima, as COPs, para poupar o planeta das mudanças climáticas. Entre impulso natural e método, cabem infinitas nuances.
Talvez o primeiro a tentar salvar o mundo de maneira planejada tenha sido ele, Deus, quando decidiu punir a raça humana mas, apegado que era à beleza da sua criação, elegeu um líder, fez um plano, proveu os recursos e estabeleceu prazo e metas. Era preciso que cada espécie fosse capaz de se reproduzir quando o caos em forma de dilúvio passasse.
Desde então, essa história é contada e recontada. Começou no Livro do Gênesis, o primeiro dos cinco que compõem a Torá, na tradição judaica, e parte do antigo testamento das religiões cristãs. Inspirou Vinícius de Moraes e continua alimentando a literatura infantojuvenil.
Este ano, uma obra brasileira inspirada e adaptada a partir do relato da Arca de Noé ganhou o mundo ao entrar para a prateleira de livros incríveis da Feira do Livro de Bolonha, passando pelo crivo de um grupo de jurados especializadíssimos.
Desembarcados, de Daniel Kondo e Guilherme Gontijo Flores, musicado por Carol Naine, foi publicado pela FTD em 2024. A editora não vende diretamente pelo site, mas você pode comprar ou encomendar em qualquer livraria de bairro, aquelas em que o livreiro te olha no olho e, muitas vezes, servem um café passado na hora.
Na apresentação, uma avó conta de olhos fechados à neta que escuta com ouvidos bem abertos como, depois de Noé, tantos animais foram “desembarcando” da arca da história. Em seguida, cada dupla de páginas apresenta em versos musicados um animal extinto – como o mamute, por exemplo. Animais que viviam tranquilos na Terra e que sumiram porque não houve convivência pacífica com o ser humano.
A página sobre o unicórnio-da-Sibéria, outro caso, conta para as crianças que existiu um animal bem diferente do ícone visual infantil que abusa da sua presença em produtos de consumo. Fica nítido que a extinção é resultado da ação do homem por meio de palavras bem marcadas como “alvo”, “pega, rasga e mata” e “caçado”.
Uma das surpresas do livro é uma dupla dedicada ao Homem de Neandertal, uma parte de nós que também foi extinta, no mínimo em parte, pelo Homo Sapiens.
Alguns animais, tidos como extintos, às vezes voltam – “é milagre e é mistério”. Saem do fundo da arca, há muito esquecidos, trazendo uma dose de esperança e alegria, como a ararinha-azul. É também com esperança que o livro termina, com a imagem de uma garrafa com uma mensagem boiando na água. A menina que escuta a avó se chama Zoé – cujo significado reúne vários sentidos para a vida, em grego.
Que animais nossas crianças protegeriam da extinção hoje e por quê? Que animais trariam de volta? Como poderíamos coabitar? Seriam necessárias mais leis? Ou mais conversa? Que coisas no mundo poderiam ser extintas? O que faremos para isso? Vai puxando o fio. Lembre-se que quando suas respostas se extinguirem, é hora de devolver perguntas e deliciar-se com as respostas e com as ideias.
As ilustrações de Desembarcados são compostas por elementos geométricos, que sugerem a imagem dos animais, nunca inteiramente representados. A boca do tigre, por exemplo, é também a boca do livro, proporcionando uma brincadeira a mais durante a leitura. No link no título do livro, acima, você pode ouvir todas as músicas.
Cantos da Terra
Outra obra que entrou para a lista de livros incríveis de Bolonha este ano, desta vez na categoria inédita da Sustentabilidade com 150 títulos, foi Cantos da Terra, também de Daniel Kondo, agora em parceria com Alexandre de Sousa, publicado em 2024 pela Studio Plural.
É sugestivo – e bonito – como o título de duplo sentido nos conecta. O canto como espaço físico não é nenhuma alusão à turma da terra plana – este ponto está bem explícito no prefácio. Ele nos conduz a outro raciocínio. Indica que ao sentir que a vida se esgota, nós, a humanidade, vamos nos sentindo encurralados – habitamos o espaço que resta e, ao mesmo tempo, nos isolamos. Como sair desse canto? Como ir para outros lugares?
Cantando. Juntos.
Os países membros da ONU fizeram um mapa para nos guiar. Os autores transformaram os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODSs) definidos em 2015 em versos.
A literatura é uma das inúmeras maneiras de se conectar com o outro, com a natureza e com um objetivo comum. Aqui é apresentada numa mistura de desafio com pedido, oração e até súplica. Os títulos de cada página dupla sempre no imperativo convocam o leitor com delicadeza a participar por meio de atitudes, desde as contemplativas até as mais solidárias.
Em conexão com Desembarcados, o livro imagina a humanidade em uma barca, uma nau, que a leva para todo canto. Para abrir e fechar essa viagem acrescentaram um “capítulo” inicial, batizado de Imagina e um final, Vive.
Para tratar do objetivo número 3, por exemplo, Saúde e Bem-Estar, o canto é “Acarinha”:
OS MAIS JOVENS VIAJANTES
JÁ QUE É LONGA A JORNADA
COM CURVAS E CONTRACURVAS
BAIXOS, ALTOS E MALEITAS
A FEBRES ESTÃO SUJEITAS
ALGUMAS HORAS SÃO TURVAS
TRAZ A ESPERANÇA APALAVRADA
DOS CURANDEIROS ANDANTES
Na última página há uma lista dos 17 objetivos com os temas originais, associados a cada dupla do livro.
É para ler devagarinho, uma dupla por dia, ouvindo como ressoa no outro. O que a criança pensa de cada “canto”? O que ela entende? O que ela acha que pode fazer sozinha? E na escola?
O livro é um manual poético e, como tal, convida e provoca de um jeito leve o movimento rumo à ação. Hora de tirar as ideias do papel. Esse fazer – muitas vezes considerado utópico para muitos – não precisa ter um objetivo inalcançável e nem salvar o mundo de uma vez. Conectar-se com o que existe de verdade em volta já é muito numa era em que se vive mergulhado no mundo digital.
Bônus
Daniel Kondo não começou aí. Em 2020, já havia publicado A Mancha, também com a FTD, em parceria com Guilherme Gontijo Flores, o mesmo poeta de Desembarcados. O livro recebeu o Selo Cátedra Unesco em 2020, que premia os melhores livros infantis e juvenis publicados no país , em parceria com a PUC-RJ.
Menos otimista e brincando com o som feito pelo ch e pelo x, mostra como uma mancha de óleo cresce e vai tomando conta de tudo, sem considerar as vidas que encontra pelo caminho. O texto é angustiante e cutuca o leitor “que não se lixa” e que “relaxa”. Um chacoalhão necessário. Para leitores de todas as idades.
Sobre os autores
Daniel Kondo
Ilustrador e designer gráfico, nasceu em Passo Fundo (RS) e hoje vive em Punta del Este, no Uruguai. Trabalha como autor e ilustrador de livros infantis e juvenis. A relação do ser humano com a natureza inspira grande parte de sua obra literária.
Guilherme Gontijo Flores
Nasceu em Brasília (DF) e mora em Curitiba (PR), onde trabalha na Universidade Federal do Paraná (UFPR) como professor e tradutor.
Carol Naine
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ) e vive em São Paulo. Compõe, canta e toca as músicas que faz e também musica o trabalho de outros artistas.
Alexandre de Sousa
Nasceu em Lisboa, mas trocou a capital de Portugal por Óbidos. Aviador, professor e escritor. Já publicou romances, poesia e contos.