O caos fundiário vai matar os créditos de carbono brasileiros?

O esquema de grilagem revelado pela PF envolvia uma fraude sofisticada e difícil de detectar – mas a propriedade da terra segue sendo uma vulnerabilidade central dos projetos no país

O caos fundiário vai matar os créditos de carbono brasileiros?
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A operação da Polícia Federal que revelou o que deve ser o maior escândalo envolvendo créditos de carbono no país deixou muitas  perguntas no ar. 

Os projetos investigados passaram por todas as etapas de controle que costumam dar segurança da procedência dos créditos aos compradores. Contaram com a consultoria da Carbonext, uma das maiores desenvolvedoras de carbono do país, além de terem sido auditados de forma independente e recebido o selo da Verra, líder e principal referência em certificação de projetos. Como os problemas não foram detectados?

O que leva a outra questão inevitável: é possível confiar nos créditos de carbono vindos da Amazônia?

Esta pergunta é retórica – mas ao mesmo tempo expressa uma dúvida genuína.

O crime massivo de grilagem de terras no Amazonas para a realização de projetos de carbono foi cometido por uma quadrilha com anos de experiência e a cumplicidade de servidores públicos que falsificavam documentos na sua origem, segundo a PF.

Obviamente, isso não é a regra entre as empresas do setor.

Mas o problema vai além da Justiça. Bem antes da ação policial do último dia 5, os créditos de carbono já vinham enfrentando uma séria crise de confiabilidade, especialmente os que mantêm a floresta em pé, também chamados REDD+.

Os compradores estão retraídos há mais de um ano, com medo de ver seus nomes envolvidos em empreendimentos que exageram o benefício climático ou exploram comunidades indígenas.

Agora, a Operação Greenwashing trouxe à tona um novo elemento radioativo para o mercado voluntário: a questão fundiária, especificamente na Amazônia, que concentra a maioria dos projetos de carbono do país.

As checagem tipicamente realizadas em empreendimentos desse tipo foram cumpridas sem que fossem levantadas dúvidas.

Há como garantir que episódios parecidos não se repitam no futuro, sabendo que os casos de grilagem de terras são um dos problemas mais antigos e intatratáveis na região?

A resposta para essas questões será decisiva para a ambição brasileira de liderar uma economia baseada nas chamadas soluções naturais, atraindo recursos privados para proteger ecossistemas e ao mesmo tempo ajudar na luta contra a mudança do clima e a perda de biodiversidade.

Uma fraude elaborada

O empresário Ricardo Stoppe Júnior é apontado pela PF como o cabeça de um extenso esquema de falsificação de documentos que lhe davam a posse de cerca de 500 mil hectares de terras pertencentes à União.

Thiago Marrese Scarpellini, um dos delegados da PF que participaram da investigação, afirmou ao Reset que Stoppe montou um “esquema perfeito” de grilagem digital, aperfeiçoado ao longo de mais de uma década.

A organização corrompeu funcionários de cartórios, servidores públicos nas três esferas governamentais e teve acesso ao Sistema de Gestão Fundiária (Sigef), plataforma de georreferenciamento do Incra que fornece documentos necessários nas verificações de titularidade, segundo a PF.

É possível – e provável, de acordo com pessoas ouvidas pela reportagem – que as fraudes tenham sido tão bem executadas que essas instâncias de checagem não seriam capazes de identificá-las.

Elas passaram despercebidas pela Carbonext, que atuou como consultora nos empreendimentos, por auditorias independentes e pela Verra, a principal certificadora de créditos de carbono florestais.

Em resposta a questionamentos do Reset, a Carbonext afirmou não ter havido falha no processo de verificação.

“A Carbonext não presta serviços de regularização fundiária.  A empresa desenvolveu os projetos de crédito de carbono. Para fazer isso, a empresa exige documentos que comprovem que o proponente é de fato proprietário das áreas. O Grupo Ituxi apresentou todos os documentos necessários, emitidos por cartórios, pelo Incra e pela Secretaria de Estado das Cidades e Territórios do Amazonas (Sect-AM). A Carbonext verificou no Sistema de Gestão Fundiária (Sigef), do Incra, os dados de georreferenciamento das áreas. Não havia nenhuma contestação da titularidade ou posse.”

A companhia afirma ainda que o problema apontado na Operação Greenwashing “não é falta de diligência, mas um caso pontual de corrupção e fraude documental envolvendo os investigados”.

A Verra não quis responder a perguntas específicas sobre o escândalo. Em nota publicada em 13 de junho, a certificadora diz ter iniciado uma revisão interna dos projetos sob suspeita.

A certificadora diz não comentar casos que passam por esse tipo de análise para “não influenciar indevidamente o processo”, que pode se estender por semanas ou meses. Os três projetos parte do inquérito – Unitor, Fortaleza Ituxi e Evergreen – estão “em suspenso”, segundo comunicado da certificadora.

Investigação

De forma resumida, eis o caminho básico de um empreendimento que visa gerar créditos REDD+, considerando somente a parte fundiária.

O exemplo hipotético envolve um proprietário de terras na Amazônia e uma desenvolvedora que vai fazer o desenho do projeto e lidar com todas as questões técnicas.

O primeiro passo da empresa é fazer a validação fundiária, ou seja, determinar se o proprietário realmente é o dono da terra. Antes mesmo de buscar documentação, é feita uma análise com base em mapas.

A regra, segundo as companhias, é que a maioria das terras não passe dessa verificação inicial. Como são empreendimentos que exigem grandes investimentos antes do primeiro real de receita, a ideia é evitar todo e qualquer risco.

Caso essa primeira checagem não levante nenhum problema óbvio, começa o exame da documentação. Esse trabalho pode ser realizado pela própria empresa de carbono ou por escritórios de advocacia especializados.

O processo é demorado, complicado e caro. “Não sai por menos que 50 mil dólares”, ou cerca de 20% do custo para elaborar o projeto, diz o diretor jurídico de uma desenvolvedora.

O objetivo é estabelecer a chamada cadeia dominial completa, ou seja, voltar no tempo até o momento em que a terra passou do Estado para o primeiro proprietário privado.

“É um trabalho de investigador”, diz outra pessoa do mercado. Em muitos casos a conferência da papelada precisa ser feita in loco. “Você vai até o cartório em cidades no meio da Amazônia, conversa com quem conhece a história do lugar. É uma auditoria fundiária e um KYC (know your client).”

Certificação

Com as garantias fundiárias e os estudos técnicos que provam a elegibilidade daquela área para gerar carbono, é produzido um documento conhecido como PD, de project description, que será então auditado por uma terceira parte independente.

Este é um trabalho muitas vezes realizado por empresas estrangeiras, que se especializam na parte técnica dos PDs, como o estoque de carbono de um pedaço de floresta. Todas são credenciadas pela Verra.

A conferência dos documentos que comprovam a titularidade normalmente fica a cargo de empresas brasileiras, que conhecem as leis locais.

Passada a auditoria, o projeto é então avaliado pela Verra.

A empresa é americana, com sede em Washington, e lida com empreendimentos realizados no mundo inteiro. Embora a companhia analise o projeto e revise os documentos submetidos, não seria realista esperar que problemas fundiários fossem descobertos nesta etapa, dizem as pessoas ouvidas pelo Reset.

“E a Verra foi criada numa lógica de common law, do direito americano e inglês. A lógica é: ‘Eu te pergunto, se você me responde a responsabilidade é sua’. No Brasil, é diferente, temos a documentação, a burocracia. Esses mundos se chocam”, afirma uma pessoa que lida com o lado jurídico.

Possíveis soluções

As empresas do setor afirmam que o nível de exigência vem aumentando, tanto de sua própria parte quanto dos auditores, um movimento puxado pelos questionamentos dos compradores sobre integridade.

Segundo uma reportagem do site Mongabay, os créditos gerados pelas empresas de Stoppe foram adquiridos por empresas como Gol, Nestlé, Toshiba e Gol, entre outras.

“Não é só a questão fundiária, mas também os requisitos técnicos”, afirma outro participante do mercado. “No ano passado, colocamos 5 mil propriedades na região amazônica para avaliação no nosso sistema. Só 70 tinham viabilidade. Ou a metodologia não se aplicava, ou tinha alguma questão de regularização da terra.”

Essa busca pela qualidade, porém, tem limitações. Companhias “sérias” podem estar dispostas a investir o tempo e o dinheiro necessários para ter as melhores garantias possíveis, mas o mercado não tem regulamentação. Aventureiros continuam agindo no Brasil e no exterior.

Selos de qualidade criados pela própria indústria são apontados como uma maneira de diferenciar os créditos de qualidade – embora, também neste caso, eles não avaliem o caos fundiário brasileiro.

Regulação 

Uma possível saída pode estar no mercado regulado, cuja criação está tramitando no Congresso. O projeto de lei em análise prevê que créditos do mercado voluntário possam ser negociados no ambiente fechado que será estabelecido, o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões.

Isso aconteceria mediante aprovações prévias, o que eventualmente incluiria uma validação da titularidade por um ente governamental. Créditos que passassem por esse crivo ofereceriam uma tranquilidade muito maior.

O esperado aumento dos preços também seria um incentivo relevante. “Uma coisa é o nível de investimento que um desenvolvedor fazia quando o crédito era vendido a US$ 1. Outra é quando esse mesmo crédito chega a US$ 30, US$ 40, US$ 100. Aí, obviamente, você vai ter um esforço [de due diligence] muito maior”, afirma um experiente observador do mercado.

Com a aparente sofisticação da fraude descrita pela polícia, “seria difícil identificá-la com os instrumentos existentes”, afirma um advogado que atua no mundo dos ativos naturais. “E não existe solução à prova de bala.”

A ação da PF serviria no mínimo como um desincentivo, afirma. 

A Aliança Brasil NBS, que reúne as companhias do setor, afirmou em nota haver a “necessidade de saneamento do setor, de modo a separar quem opera com honestidade daqueles que negligenciam as normas de conformidade, as boas práticas e as leis nacionais”.

Mas o fato de o mercado de carbono aparecer no noticiário policial certamente não ajuda. Enquanto isso, as companhias têm de resolver por conta própria situações que desafiam o bom senso.

“Tem o caso do sujeito que recebeu o título de propriedade da terra quando tinha oito anos de idade. Ou então você descobre que um determinado cartório que teria o documento foi destruído num incêndio. A forma de esquentar o título [da terra] era literalmente colocar fogo no cartório”, diz a executiva de uma desenvolvedora.